Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

SER TÃO PROFUNDO/MANGUE INTERIOR (em obras)

Editora do Autor
Recife - 2006








ITINERÁRIO


In limine 04

Parte Primeira: Ser-tão Profundo

Demarcação da poesia nº 1 05
Peleja 06
Alcácer-quibir revisitada 07
Ser-tão profundo 08
Meu Cristo gótico 09



Parte Segunda: Mangue Interior

Demarcação da poesia nº 2 10
Mitopoese I: O Unicórnio 11
Ilha-sem-Deus 12
Mangue 13
Estufa 15
Cidade Sitiada 16

Como Se Fosse Um Posfácio 17

(Textos em azul, ao final são esboços, e não compõem o corpo da obra.)





In limine


As palavras que nomeiam esse emblemático itinerário de retirante não saíram apenas de mim. Por meus olhos, pelos meus ouvidos, por todos os meus sentidos ecoam e fluem os sons de outras palavras, vistas, ouvidas e lidas. Muito jovem ainda, vi um filme nacionalíssimo: Vidas Secas. Filme que impregnou minhalma de menino urbano com a luz enceguecente e árida dos sertões. Desde essa época, aquelas imagens de uma família sertaneja fugindo da estiagem por leitos secos de rios, tendo por plano de fundo os mandacarus solitários no horizonte, se tornariam signos, arquétipos, clichês abrasados (ou brasões?), no que há de coletivo em meu inconsciente. E logo compreendi que aqueles clichês simbólicos seriam, na minha arte, recriados pela perspectiva de minhas palavras. Graciliano descreve um juázeiro latejando ao sol da tardinha: um clichê. As queixadas de animais mortos na seca: clichês. Clichês eternizados pelas xilogravuras, cerâmicas, emboladas, cordéis e, romances. Obras de arte que se tornaram verdadeiras marcas, registradas em nossas retinas, em nossa memória.
Essas marcas, e não só as marcas de ferrar bois, é que seriam entendidas, pelo espírito arguto do romancista Ariano Suassuna, como símbolos de uma heráldica sertaneja; como expressões armoriais do universo nordestino. Seriam os emblemas e brasões do Quinto Império, surgido de um sebastianismo lusófono, em que o território da pátria é a própria língua, como queria Bernardo Soares (Fernando Pessoa). Creio nisto, pois o Quinto Império consiste de uma comunidade supranacional de língua portuguesa, revel à ânsia globalizante de devorar a alma da nação, sua cultura popular. Contra esse monstro globalizador temos a força visceral da Língua, última flor neo-latina, inculta e bela. A pátria é antes de tudo uma forma habitual de convivência, daí entendermos por língua pátria todo o arsenal de cultura, usos e costumes descritos e guardados por ela. As palavras são usos, como dizia Ortega y Gasset. E os signos armoriais entrevistos nas marcas de ferrar bois pelo arguto Ariano Suassuna, fixam-se nos usos, na língua, da mesma maneira que os repentes, as emboladas, o côco da praia são todas fixados no código imenso da língua falada, na pátria intra-histórica do idioma.
Mas não há como esquecer de outro poeta, espírito iluminado e breve como um relâmpago sobre a maré de agosto: Chico Science. Esse artista também captou os sons e as imagens dessa terra e criou revolucionários brasões poético-musicais. E não é à toa que quero citá-lo ao lado de Ariano. Quero aqui aproximar as idéias desses dois artistas geniais. A diferença é que Chico captou outra geografia, a da fome ribeirinha, clichê firmado por Josué de Castro. E registrou uma heráldica radicalmente nova e alumiosa. Quase que digo que Chico era o Prinspe Alumioso, feito aquele da Pedra do Reino, e que irá voltar para fundar um Quinto Império manguebeat. A ausência do Science deixa uma saudade messiânica que pode gerar na cena mangue uma espécie de neo-sebastianismo litorâneo. Isto porque Chico trazia um dizer p(r)o(f)ético e missionário. Seu clichê era cósmico: da lama ao caos! Era, em verdade, um Prinspe fulgurante que nos arrebatava com suas misturas de ritmos, com suas palavras apocalípticas, inspirado nas antevisões de um Josué de Castro.
Pois, no pórtico dessa obra, em que busco uma mitopoética manguearmorial, venho saudar a fusão das artes desses dois mestres, Ariano e Chico Science. Tentarei captar, do inconsciente coletivo, os signos que façam o encontro do sertão com o mangue, por seus ritmos, seus cheiros, sua flora e sua fauna, e, principalmente, pelas palavras mestiças dos descendentes de Canudos, que, egressos do semi-árido, habitam as margens dos rios poluídos dessas duas cidades, irmãs das pedras que seguram o mar...



PARTE PRIMEIRA

Sertão profundo

inserir foto da Pedra do Reino-São José do Belmonte




Demarcação da poesia nº 1



Meu canto é que nem um filete d’água minando a pulso de um lajeiro. É assim, arrastado, gutural, canto monossilábico, melopéia pungente, arrancada da pedra do meu peito.
Canto esse meu canto agoniado, esse relincho, esse mugir, essa infralinguagem, como a linguagem dos bichos que tanjo em meu sertão profundo..
Vou cantando e tangendo esse gado invisível, por entre espinharas sibilantes e seixos esbraseados.
Meu canto germina feito um cardeiro em minha alma de abrolhos, na solidão e no silêncio, durante as léguas dessa caatinga interior.
Dessa terra rachada e sem húmus, exsurge um léxico raquítico, vocábulos mínimos que se alongam, tristes aboios, mugidos, na minha garganta rouca e ressecada.
Com a morte em minhas lembranças e a dor em minhas andanças, canto uma agonia fechada, solitária, universo parco de cabras e pedras, quase sem palavras com que se cantar.

***

PELEJA
a Carlos Pena Filho


Acender uma fogueira
Sobre os destroços da fúria:
Dizer o dom mais terrível
No tom da mais vil ternura.
Por monossílabos vastos
Cantar o avêsso, a feiúra.

Atravessar a existência,
Esse fado, essa caatinga,
Com a Língua ressecada
E o estio dentro da fala.

Domar a Onça suasssuna
Da Vida graciliana,
Inda que o peito lanhado
Pela palavra, cardeiro;
Pela palavra, essa morte.

Aboiar angustiado,
Rumor de vozes queimando:
Viver é ser renitente,
Acender uma fogueira
Sobre os destroços, os destroços,
(...ai, que légua tão tirana...)
sobre os destroços da fúria.


3º Lugar no Salão Pernambucano de Poesia – Bienal do Livro 1994

***

ALCÁCER-QUIBIR revisitada
(monocromia armorial)
a Ariano suassuna

Vermelhidões no poente,
céu sangüíneo, incandescente.
Da porfia oiço o alarido:

Rezas,
rajadas,
rugidos.

sonho um sonho mal dormido:
de morte, em luta renhida,
foi Dom Sebastião malferido?
*
Feito de sonho é o que vejo:
estranhos carros de fogo
cruzam os céus sertanejos.
Ungem de luz a caatinga
Essas flamejantes bigas.
Vermelhidões no poente:
Seriam sarças ardentes?

Nos sertões os céus tão rubros:
sangue na chã de Canudos?

Ao longe oiço estampidos:
raios,
trovões
e...gemidos

Vermelhidões no poente
rumores de gado e gente
clamor do sangue inocente:.
hereges sangrando os crentes?

sonho um sonho mal dormido:
de morte,( ouço o rugido)
foi o Prinspe atingido?...

vermelhidões no poente:
crepúsculo enceguecente,
E em estranho carro de fogo
Dom Sebastião soerguido...

***

SER TÃO PROFUNDO
a Euclydes da Cunha


Um sertão que me perpassa, paragem desolada, pélago extinto e sem água...
A estrada poenta e causticante rasga caatingas estonadas e a secura extrema dos ares.
Deve habitar em mim, inserta,
uma geografia euclidiana: sylva horrida.
Insolações recrestando capoeiras, dias imóveis, cactos brasis, e a erosão eólia da planície.

Não há luar, pungente ou não, como esse de meu ser, tão estóico ente,
lume arquivado ad aeternum nos meus olhos fatigados,
asno ruminando por monótono horizonte, alva alimária,
deambula, vulto arcaico, pelas dunas de um pérpetuo mar lunário...

Minh’alma roça a flora estiolada e as areias incendidas do deserto
Os lagartos sutis escondem-se nos desvãos das pedras...
A cidade mais próxima fica a léguas de mim
e em vão procuro um juázeiro, em cuja sombra me proteja Deus
dessa flor única e intensamente rubra,
que cauteriza o céu com suas pét’las de (ultra)violeta incendiária.

Eu também saio de mim à mesma hora e traço órbitas automáticas e iguais
em meio à solidão sem língua ou nexo dos ácidos habibs de jornada,
sem túnica, turbante e sem certeza se é a vida essa vereda, solamente,
um sertão n’alma de nômades silentes, retirados de sítios ancestrais;

Vou reto na planura alvinitente
revelando áspides e répteis
feito um mandacaru despido e triste

Ser tão profundo.
Endógeno sertão.
Essa impossibilidade de alçar vôo.
Casulo ôco e imponderável de mariposas natimortas.

Em qualquer parte de mim dardejam rádios espinescentes
e há a mesma aridez das ipueiras, charcos ressecos, areiais exsicados...
Léxicos de solidão também euclidiana.
Eu mesmo um ser tão só...desidratado
galhada sem folhas de planta esturricada,
(in)maginando um sertão que não se vê...


(Recife, 14.03.06, dia da poesia)

***

Meu Cristo Gótico


“Brotará como raiz da terra sedenta;
não há n’Ele bom parecer, nem formosura;
desprezado e o último dos homens;
varão de dores, experimentado em quebrantos”.
(Isaías, 53:2-3)



E se em vez de um fraco ser, senil e esclerótico
no limiar entre lunático e neurótico
fosse o próprio Cristo a ressurgir nos trópicos?
Seria apenas isso que se diz: um beato sertanejo, um místico ?
ou um Dom Quixote do sertão, um épico?
Um infeliz Quasímodo matuto, cômico e simiesco?
Ou um Judas redivivo, em purgatório, escorraçado e dantesco?
Mas quando o contemplava, estendido nessa foto
Lembrou-me um santo, macerado e só: meu Cristo gótico.


inserir foto do cadáver de Antonio Conselheiro encontrado na Igreja Nova de Canudos – foto Euclydes da Cunha fonte www.vidaslusófonas.com.br

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PARTE SEGUNDA

Mangue interior



Demarcação da poesia nº 2


Meu canto espumeja e baba, como os detritos na lama, palavras-lixo que enfeiam a orla do manguezal. Meu versejar, fugidio, repente breve e assustado, feito os uçás sob a chuva, sob o troar dos trovões.
Canto com meus olhos baços, nessa paisagem restrita, que me permitem as ruelas que restam entre os mocambos. Só os pardais sobre o mangue sabem a linguagem da brisa que soprava na caatinga de onde vim retirante...
Vou cantando e navegando nessa baiteira raquítica, que anda se balançando, feito a alimária cansada que abandonei nos caminhos.
Meu canto veio fugido e encalhou nessas ilhas, que minha alma enlameiam, molhando a crosta de abrolhos que me vem no interior.
Dessa lama pardacenta, surgem palavras aquáticas, salôbras e insalubres, ligeiras feito crustáceos, que se encovam em meu ser.
A alma da maré vazante é um ôco em minhas lembranças, a angústia de não ser nada nessa cidade de escombros, mocambos que não produzem palavras pra se cantar. (Ah...que saudade de lá, de tanger gado moroso e à tardinha aboiar...)

***

Mitopoese I, o Unicórnio


...Jaz a Noite Imensa sobre o mangue...

A cidade surge antes,
das enchentes, das vazentes
fundação amorfa, sem face, vazia...

A cidade emerge, ser eqüeste,
Alça as patas, veste a ventania,
Galopa vadia, égua numinosa.

A cidade avança,
Besta airosa,
E aponta para o Atlântico o seu chifre calcário.

A cidade é vária:
Puta dos batavos, marranos, mascates.

Múltipla, mistério:
Vila pescadora com matrizes míticas;
Titãs com tarrafas, jêjes argonautas,
Ninfas pomba-gira, reis iorubás.

A cidade é anfíbia:
Ilhas de enxurradas,
Sertões arribados sobre palafitas.

(ouve-se o relincho de uma gente aflita...)

Antes, muito antes,
A cidade dá cria (protopoesia?)
Sobre os arrecifes que detém o mar.

Vaza a noite um imenso alfanje;
Ouve-se o vagido e o sangue
lava o umbigo de pedra
do Reino do Amanhã

(ouve-se em alarido, a turba; ouve-se um trotar...)


***

ILHA –SEM- DEUS


Aquecer a frágil’alma
Ao calor desses destroços
Esses retraços que ardem
Em um ser baldio e sem crença

Esfregar mãos engelhadas
Ao fogo desse monturo
Prender a morte num engulho
Sem desistir da existência

Buscar sentido no caos
E fé na lenta agonia:
Esses barracos imundos.
Essas entranhas vazias.

Trapos, lama, palafitas
Sem Deus na ilha esquecida

E a vida?
A vida é também retraço
No pó das desconstruções.
Essa inútil empreitada.
Um traço desesperado
Que nós riscamos no Nada...


***

Estufa


O que é que há nessa estufa?

Miséria.

O que é que causa essa estufa?

Ganância.

Por que assim tão estúpida?

Demência.

E o que produz essa estufa?

Violência.

E quem governa essa estufa?

Covardes.

Que nome dá-se a essa estufa?

Apartheid.

Onde se acha essa estufa?

Favela.

30.03.06

***

CIDADE SITIADA

"Cai o orvalho na face do escravo,
Cai o orvalho da face do algoz
Cresce, cresce seara vermelha
Cresce, cresce vingança feroz

(Castro Alves)


Sobre as colinas ao teu redor
O ódio cresce
E te espreitam as tuas vítimas,
Enquanto danças na orgia
Do selvagem capital
Te embriaga o vinhoto
O CO2
A fumaça.
Tocaiam os enjeitados: negros, mulheres, crianças...
― Tu danças e o tempo passa...
o tempo passa e tu danças...―

Breve, a cruenta vingança
Dos operários famintos,
Das putas mais sifilíticas,
Dos trombadinhas lanzudos
(descenderão de Canudos?)

Breve, ó mãe dos burgueses ricos,
Uma legião de nanicos
Vinda do alto-sertão
Fará a grande invasão:
Desce o Arraial dos Palmares
Que agora habita nos morros de tua periferia,
Desempregados e loucos (já escuto seus gritos roucos!),
Os quilombolas modernos,
Zumbis saídos dos mangues ― sem-terras vindos do inferno
Virão ceifar-te com sangue,
Armados até os dentes: enxadas e picaretas,
Peixeiras e canivetes
Foice e martelo...marrêtas.
Saquearão teus mercados, teus bancos, tuas mansões,
Farão trincheiras em teus templos, alucinados de fé
E enlouquecidos de fome derribarão teus quartéis.
................................................

Um Condor gritou nas praças.
É tempo de ouvir sua voz:
Se calas a voz do povo...

―POETAS, GRITEM POR NÓS!

(poema-vaticínio de 1988 – 1º Lugar no Concurso Literário da Fafire)


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Como Se Fosse Um Posfácio...


Por Carlinhos do Amparo
P(r)o(f)eta das ladeiras carcomidas d’Olinda


De onde tirou Adão, o primeiro humano, o Urvater, os nomes que ia pondo às coisas em seu derredor? Não me perguntem, pois não sei. Mas considero que as palavras já existiam em algum lugar. Os fonemas primordiais, os vocábulos adâmicos, talvez estivessem, ab origene, dependurados dos galhos daquela milenária árvore do conhecimento do bem de do mal. Criar do nada, creio que Adão jamais criou!
Escolher os sons e combiná-los, provocando insólitos encontros vocálicos, surpreendentes aglutinações; esta foi a operação original do primeiro falante. Depois, a babélica multidão de humanos saiu, mundo a fora, a misturar som sobre som, dito sobre dito. Mas, tudo de segunda mão, reciclado, recondicionado. Eram as collages, as apropriações, os empréstimos linguísticos, formando o imenso léxico universal, fundado na língua edênica, a linguagem original, a Ursprache. Creio nisto!
Não se admirem, portanto com o que dizia Paul Valèry:
“Para inventar alguma coisa são necessárias duas pessoas: uma idealiza combinações e a outra escolhe”.
Escolha e combinação, eis a raiz de toda a invenção! No entanto da invenção da linguagem até a palavra enquanto obra de arte, poesia, há uma distância imensa. Como dizia o antigo samba, “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais.” No dizer do prof. G. M. Kujawski, a poesia não é apenas aquela ars combinatória de palavras de Valèry, é um pouco mais:

“é certa perspectiva do real, certa compenetração do pensamento com as coisas.”

Aqui, nesta obra literária, há a multiplicidade de perspectivas do real. O léxico dessa poética, estranho e fundo, como cacimbas sertanejas, não foi achado dependurado nas galhas de nenhuma árvore edênica. O pomar em questão é a biblioteca virtual: o mundo da palavra escrita. Viaja o poeta em suas leituras, em seus alumbramentos pelo universo da literatura. Ariano Suassuna, Jorge Amado, Osman Lins, Rachel de Queiroz, José de Alencar, João Cabral, Graciliano, Euclydes da Cunha, Lins do Rêgo, Raimundo Carrero, Luiz Beltrão e, até mesmo Josué, — não o bíblico, mas o nosso, o de Castro, profeta de um mundo famélico de pão e de palavras —, são os plantadores desse pomar do imaginário. Deles saíram árvores frondosas, como o Romance d’A Pedra do Reino, O Fiel e a Pedra, Seara Vermelha, O Quinze, O Sertanejo, Morte e Vida Severina, Vidas Sêcas, Os Sertões, Pedra Bonita, Sombra Severa, Os Senhores do Mundo e Homens e Caranguejos. Verdadeiras árvores da vida, de onde pendem, em galhos viçosos, “as palavras que nomeiam esse emblemático itinerário de retirante”, aqui descrito em poemas, que vão emergindo desde o mais profundo e insólito sertão até o inaudito mergulhar num denso mangue interior. Ave Poesia! Ave Poeta!


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Rascunhos - poemas apenas esboçados



Uma Loa pra Chico Science
(esboço de poema)


Tão breve como um relâmpago
Sobre a ressaca de agosto
Tão leve como esse instante
Um flash sobre meu rosto
Fugaz, corisco, rajada
De vento nos manguezais
Feito Dom Sebastião
Morrendo entre coqueirais
Prínspe da nova nação
De metaleiros astrais
Profeta do manguebeat
Surto dos armoriais
Ao retumbar das alfaias
Uma guitarra empunhava
Zumbi da beira da praia
Com a voz rouca cantava
Contra a miséria infame
Que essa elite sem nome
Impôs ao povo do mangue
Homens-crustáceos, sem sangue
da geografia da fome
De que Josué falava.





Romance mítico das Torres Gêmeas



Nimrod redivivo ergueu um dia
Na rica Ilha da Manhã - Tardia
Duas torres iguais
Construídas com o ouro da agonia
Dos mauros povos e da noite fria
Que encobria as tendas infelizes
De tribos desiguais
Nimrod enquanto as gêmeas torres erguia
Dançava em saturnais orgias
Sem se importar se algu’a tribo irmã sofria
Se tinha paz

Por isso os povos d’África retinta
E da latinoamérica faminta
Nem criam mais
Que Deus, o pai de todos os humanos
Pudesse ouvir seus sofridos reclamos
Seus tristes ais

E Nimrod, o Bélico, atacava
A todo o povo que não lhe enviava
áureos metais
E explorava as nações com ousadia
Dizendo-se ser o alumioso guia
Dos ancestrais
E entre os povos da planície urdia
Um ódio eterno com o que fazia
Com seus iguais
E eis que lhe aconteceu que um dia
entre as tribos do deserto havia
um Deus Falcão
Sobre as seteiras dessas fortalezas
Arrostando com eles três mil almas
Sem lhes dar tempo pra terços nem rezas
Pros mármores candentes do inferno
Eterno é o ódio. O ódio é eterno,
Entre os povos da águia de do falcão
Urdido na miséria e na injustiça
Entre os povos fortes do sertão
O Falcão prateado do deserto
aponta o seu bico afunilado
Pras Torres reerguidas por Nimrod
o eterno caçador, o Mal Amado.
E lança-se, surtado kamikase


ROMANCE DAS TORRES MÍTICAS



Dois falcões azuis, bicos acutelados
Adejam sobre outro sertão branco, nevado
Mais ao norte do meu, bem mais ao norte
E levam nos seus bicos o ar da morte
A fúria moura, a infeliz caetana
Cruzam os céus da gente soberana
de olhos claros, pêlos de trigal
Buscando as duas torres de atalaia
Fincadas no umbigo universal
E essas duas torres de vigia
erguidas em ouro negro que reluz
Que envaideceram a alma dessa laia
e os levaram, a negar a Cruz
Uma diz Morte com uma voz vazia
Outra responde: Peste, Fome e Guerra
Miséria e desespero sobre a Terra
Berçário da miséria do planeta
Verá surgir do céu feito um cometa
Dois falcões coruscantes de metal
Que enfiarão seus bicos nos seus flancos
E as torres ruirão
Ao peso imenso do pecado.

Iavé seja Louvado aleluiah!
Alah hu acbar!

E chocam-se com a manhã americana
Rachando o céu e as torres da tirana
Cidade cruel dos avaros mercadores
De olhar celeste e cabelos de trigal



Ser tão profundo (uma versão antiga)

A Euclides da Cunha


Um sertão que me perpassa, paragem desolada, pélago extinto e sem água...
A estrada poenta e causticante rasga caatingas estonadas e a secura extrema dos ares.
Deve habitar em mim, inserta,
uma geografia euclidiana: sylva horrida.
Insolações recrestando capoeiras, dias imóveis, cactos brasis, e a erosão eólia da planície.

Não há luar, pungente ou não, como esse de meu ser, tão estóico dromedário,
Ruminando por monótono horizonte,
Em tempo-espaço imaginário,
arquivado ad aeternum nos meus olhos-ampulhetas,
deambula pelas dunas de um pérpetuo mar lunário...

Minh’alma roça a flora estiolada e as areias incendidas do deserto
Os lagartos sutis escondem-se nos desvãos das pedras...
A cidade mais próxima fica a léguas de mim
E em vão procuro um juázeiro, em cuja sombra me proteja Deus
dessa flor única e intensamente rubra,
que cauteriza o céu com suas pét’las de (ultra)violeta incendiária.

Eu também saio de mim à mesma hora e traço órbitas automáticas e iguais
em meio à solidão sem língua ou nexo dos ácidos habibs de jornada,
sem túnica, turbante e sem certeza se é a vida essa vereda, solamente,
um sertão n’alma de nômades silentes, retirados de sítios ancestrais;
Vou reto na planura alvinitente
revelando áspides e répteis
feito um mandacaru despido e triste
Ser tão profundo.
Endógeno sertão.
Essa impossibilidade de alçar vôo.
Casulo ôco e imponderável de mariposas natimortas.
Em qualquer parte dardejam rádios espinescentes
E há a mesma áridez das ipueiras, charcos ressecos, areiais exsicados
Léxicos de solidão também euclidiana.
Eu mesmo um ser tão só...desidratado
galhada sem folhas de planta esturricada
(In)maginando um sertão que não se vê...
Recife, 14.03.06, dia da poesia


Glossário euclidiano


Estonado: descascado, ou de que se retirou a tona, ou casca.
Exsicado: dessecado ou ressecado
Incendida: acesa, afogueada, rubra, em brasa.
Recrestado: requeimado, crestado em demasia
Sylva: (lat.) floresta
Horrida: (lat.) horrenda
Espinescentes: com a forma de espinhos