Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

COLÓQUIO DOS PÁSSAROS

(jogo de artifício, enarrativa curta ou arranjo fictício)




























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Copyright © 2007 by Luiz Eurico de Melo Neto
Capa provisória
Eurico
1ª revisão
Eurico
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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Melo Neto, Luiz Eurico de, 1955 -
Jogos de Artifício: enarrativas curtas ou arranjos fictícios/ Luiz Eurico de Melo Neto  1ª ed.  Editora do Autor , 2007.


1. Ficção brasileira I. Título.
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Índices para catálogo sistemático:


1- Contos: Século 21: Literatura brasileira
2. Século 21: Contos: Literatura brasileira


2007
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora do Autor
Recife - PE
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Uma epígrafe:


“No hay que olvidar que la metáfora de la red, al igual que la del nudo (y, evidentemente, no hay red sin nudos), es también la metáfora de la existencia. Desde la cadena de nudos em forma de espiral que constituye el ADN primordial de la vida, hasta el insondable paquete de nervios y neurona...”
Jorge Eduardo Eielson
Poeta peruano
(1924-2006)

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COLÓQUIO DOS PASSÁROS




"Chama-se Ibbür, uma variedade de metempsicose,
pela qual o espírito de um antepassado, ou mestre
pode entrar na alma de uma pessoa infeliz,
para reconfortá-la ou instruí-la."

Isaac Luria
(cabalista de Jerusalém do século XVI)




...Precursor distante e possível dos teosofistas, Ibn Gurion poderia ser considerado como um desses sábios desconhecidos que vivem a doutrinar nos ashram, escondidos no Oriente misterioso. Todavia, aos olhos dos ocidentais, seria lembrado apenas como livreiro de profissão, ou bibliófilo, como se costuma chamar por aqui aos leitores compulsivos, que, invariavelmente, terminam soterrados pelas suas vastas bibliotecas. De origem iraniana, Gurion é citado na Enciclopédia dos Ocultistas como autor de diversos teoremas que os historiadores ainda insistem em afirmar serem pitagóricos.

O místico persa Farid al-din Abu Talib, também chamado de Muhammad ben Ibrahim Attar, em seu Mantiq al-Tayr (traduzido secretamente em Londres, pelo ocultista George L. Berg, com o título, The conversation with the birds, e em Lisboa, por um misterioso e desconhecido, Jorge L. Braga, como A Linguagem das Aves Canoras) chega a conferir a este sábio, dentre outros feitos notáveis, a decodificação da língua de certas aves raras, tais como a íbis egípcia e o milhano amestrado marroquino. Foi a partir da notação com que representava o silêncio entre os gorjeios, numa espécie de pauta musical, que Ibn Gurion, segundo relato da Young Encyclopaedia, chegou a propor a existência do hiato temporal, espécie de vazio dos taoístas, na divisão melódica do canto de alguns pássaros, o que o aproximaria da descoberta do elemento nulo matemático. Essa intuição seria, depois, disseminada pelo mundo árabe, cujos sábios logo conceberiam o zero, que se tornaria o algarismo (al-khuarizmi) mais importante da base decimal.

De Ibn Gurion parece também proceder a formulação dos rudimentos de uma semiótica primeva, que consistia, basicamente, na observação dos símbolos comuns aos textos hieráticos da antiga Pérsia e do Baixo Egito. Essa semiologia ocultista culminaria por gerar a decifração denominada Cabala, entre adeptos do judaísmo sefardita. De modo que a obra invisível deste misto de filósofo e mago permeia os tratados teológicos de diversas seitas, perdidas na imensidão babélica dos povos orientais. Guardados a sete chaves, por sociedades ocultistas, os conhecimentos antiqüíssimos de Gurion só chegariam ao resto do mundo, devido à longa presença moura na península ibérica.


***


...No ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1941, chegaria às minhas mãos, através do Melquisedec, amigo e livreiro do bairro de São José, o logradouro mais árabe do Recife, uma relíquia, em forma de brochura, de certo estudioso de Bombaim, o Dr. Mir Bahadur Ali, responsável pela tradução para o ocidente de centenas de poemas alegóricos do Islã. Tratava-se de uma tradução em castelhano do Colóquio dos Pássaros, que eu folheava cuidadosamente, com a necessária reverência para com um texto tão antigo. Nem tão reverente diante do conteúdo, uma vez que eu lia o espanhol com certa dificuldade, mas pelo raro objeto que tinha entre as mãos. Admirava-me de que as notas tipográficas deste tomo datassem de meados de 1812, dando a impressão de ter chegado ao Brasil com as caravelas fugitivas da Coorte de Dom João VI.

Interessante notar que as margens das páginas desta edição estavam rabiscadas, ao modo de escólio. Nunca tive certeza, mas, naquela época, me ocorreu que estariam, aquelas glosas, grafadas em galego-português. Não pude, no entanto, me aprofundar nessas elucidações lingüísticas, pois minha missão era simplesmente restaurá-la e devolvê-la em seguida ao meu freguês, o conhecido livreiro e colecionador recifense, instalado como buquinista à Rua do Livramento, 165, e que, como vos disse acima, me encomendara a encadernação daquela obra.



Naqueles dias, minha oficina de restauração de livros raros estava apinhada de trabalho.

(Sobre a bancada, a editio princeps de Deus na Natureza, do astrônomo Camillo Flammarion, S. N. T., 483 p. Na prensa, A Pluralidade dos Mundos Habitados, tomo II, S. N. T., 251 p., do mesmo autor; Descansando da colagem de lombadas: o interessante Manuscripto de uma Mulher, pelo Visconde de Taunay, Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 3ª ed.,1900, 253 p.; a 2ª edição de As Mentiras Convencionais de nossa Civilização, de Max Nordeau, Lisboa: Typographia de F. L. Gonçalves, 2º vol.,1911, 197 p.; e a fantástica História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, escripta por Alexandre Caetano Gomes Flaviense e traduzida do castelhano por Jeronymo Carvalho, Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1925, 584 p.; et coetera...)


...Tinha eu uns 30 anos e ainda não tinha sido atingido por essa doença horrível, que não mais me permite exercer, adequadamente, meu ofício, nem desfrutar das leituras que tanto me entretinham. Naquela manhã, quando eu começava a numerar as páginas veneráveis do Colóquio, com meu lápis de ponta mole, delicadamente, ciente de que teria de desfazer a costura daquele precioso documento, o telefone toca no corredor. Ergui o fone, meio distraído, e ouvi uma voz, com sotaque familiar, do outro lado da linha, quase sussurrar ao meu ouvido:

― Compareça ao Círculo Esotérico, hoje à noite, por gentileza, e leve o volume que Vossa Senhoria está a restaurar. Esse pedido procede do reverendíssimo Ali Ben Al-tayr, Grão Mestre do Oriente, em visita à nossa confraria.

***

...Muhammad Ali Ben Al-tayr era um ancião esguio, vestido à inglesa, mas com turbante, e bem barbeado. Pareceu-me bondoso. Os seus olhos, com um brilho azulado, semelhante ao das estrelas distantes, expressavam generosidade. Bom leitor das íris e dos astros, eu senti-me à vontade em sua presença. A reunião era secreta. Eu era convidado de honra, por privar da amizade de vários confrades do Círculo Esotérico do Pensamento, que, em sua grande maioria, eram meus fregueses da oficina de restauro. Homens cultos e adeptos do livre-pensar, apesar de serem, na quase totalidade, mestres de artes e ofícios, cuja cultura era adquirida, em parte, de modo autodidata, ou bibliodidata, como eles mesmos costumavam dizer, espirituosamente. Destaco, entre eles, o Mestre Litógrafo Luiz de Mélo, negro liberto desde o ventre da mãe, nascido em 1864, teria por volta de 70 anos, metade dos quais dedicados a colecionar alfarrábios, sendo, portanto, o mais assíduo freqüentador das livrarias e dos sebos recifenses. Diziam que descendia de árabes etíopes, de cuja nobreza tinha herdado o porte altaneiro. Lembro-me de seu traje, sempre elegante: paletó de gabardine azul claro, guarda-chuvas preto, dependurado no antebraço direito. Também era respeitado cenógrafo das festas católicas, e, anualmente, empalhava os santos do convento do Carmo. Recordo, também, do Sr. Pedro de Figueiredo, mestre de marcenaria e ilustre confrade, que trazia as honrarias de ser um dos fundadores daquela corporação de ofícios. Ambos ostentavam muitas medalhas penduradas no peito, como que adornando a faixa indicativa do alto grau daqueles beneméritos, nos serviços da Loja.

Há muitos anos, eu também recebera o convite para ser irmão na fé e nas obras secretas daquele Círculo Esotérico, mas ainda não havia acatado as incumbências. Por ignorá-la, temia os rigores da lei interna. Estava ali, tão-somente, por causa do chamado dos veneráveis Mestres.

Preciso vos alertar para um fato, importantíssimo para a vossa compreensão dos intrigantes incidentes que hão de se suceder nesta minha narrativa: em verdade, não pude trazer o volume solicitado pelos irmãos. Depois de desmontada a peça, não era recomendável o seu deslocamento, para não causar dano ao papel, já tão ressecado e quebradiço. Pedi permissão ao Melquisedec, dono do volume, que ma negou, desaconselhando, com a elegância de sempre, o traslado do raro objeto sob meus cuidados.
Só fui à reunião porque não tive como telefonar para os confrades, explicando o fato. Não tinha acesso ao número da linha telefônica do Círculo, que era restrito aos membros. Como lhes devia muita consideração e apreço, resolvi comparecer ao Círculo, mesmo sem portar o livro, e desculpar-me, pessoalmente.

***









...Os olhos do Mestre Al-tayr se anuviaram, ao saber que eu não trouxera o precioso alfarrábio. Seu semblante se transformou. Apesar de ele não pronunciar uma palavra sequer, eu percebi o quanto aquilo tinha frustrado o venerando Mestre, por uma causa que eu ainda não compreendia. Constrangido, dirigi-me até o intérprete, pedindo que me ajudasse a apresentar minhas apologias, pois não sou homem de faltar com minha palavra. Ele replicou, afavelmente, dizendo que eu poderia dizer isso diretamente, posto que o Mestre era conhecedor de diversos idiomas, desde que pronunciasse as palavras devagar. Virei o corpo e, então, ensaiei dar um passo na direção do Mestre, quando ouvi sibilar, passando rente às minhas orelhas, uma espécie de dardo, que foi atingir, justamente, o espaldar da cadeira em que estava o honorável ancião. O dardo emplumado fincou-se bem acima da cabeça do Mestre Al-tayr. De sua ponta escorreu um líquido esverdeado, que manchou o couro de que era forrada a cadeira. Apesar do susto nos demais, o Mestre voltou-se, fleumático, e apenas examinou as pequenas plumas que ornavam o dardo. Non é um zarabatana. É um acôntio, balbuciou, entre dentes. Depois, voltando-me os olhos profundamente azuis, indagou:

 Quanto tiempo, daqui até a teu oficina?
 Uns dez minutos, a pé, disse-lhe eu.

...E, levantando-se com uma agilidade que não revelavam seus modos, disse:

 Bamos, leva-me depressa até lá!

***

...Abri a pesada porta da oficina de encadernação, que rangeu nas dobradiças. Dei passagem aos visitantes. Eram três: Luiz de Mélo, Pedro Figueiredo e o venerável Mestre Al-tayr. Eu entrei, logo em seguida. A cena que vimos me impressiona até hoje. A janela do oitão fora arrombada a pé de cabra e a oficina estava toda revirada, como se por ali tivesse passado um vendaval, um remoinho. Meu trabalho de meses, praticamente, destruído: gavetas removidas, páginas de obras raras misturadas; tesouras espalhadas, pedrinhas de goma arábica derramadas pelo chão, e o azeite das almotolias, escorrendo pela manivela da maquineta de costura. Sobre a bancada, único móvel em pé (talvez por ser de madeira rústica e pesada) naquele cenário de devastação, constatamos a falta do livro, do precioso alfarrábio, motivo da minha ida ao Círculo Esotérico.

Hipertenso que sou, cheguei a ter um princípio de desmaio. No que fui amparado pelos confrades. Talvez por isso não tenha atentado, naquela ocasião, para os indícios do cenário do crime,  posto que, sem dúvida, se tratava de um roubo, aquele sumiço,  nem tampouco me dera conta de detalhes, que, entretanto, não passariam despercebidos aos aguçados sentidos do Mestre Al-tayr. Lembro apenas que ele, a princípio, cheirava, curiosamente, (quase que, farejava), os objetos sobre a mesa de trabalho. Depois, sacou do bolso interno do paletó, uma lupa. Guardo até hoje, o brilho daquela lente translúcida, na memória de minhas retinas, tão desgastadas por esse ofício de minúcias. Aproximando a lente, o Mestre Al-tayr fazia uma meticulosa observação de cada vestígio deixado pelo suposto meliante, nos quatro cantos da minha modesta oficina. Por fim, disse-me, com expressão glacial:

 Arruma teus apetrechos e volta ao trabalho, como se nada tivesse acontecido. Aguarda meus instruções. Irei à Embaixada de meu país e voltarei em alguns dias. Bamos embora, irmãos! Passar bem, Senhor Falcão!

***

...A Embaixada de seu país ficava na Guanabara, distrito federal. E, decerto, ele só poderia embarcar no dia seguinte, no paquete que zarparia, de tarde, rumo à capital do país. Pensei então em procurar o Melquisedec e levá-lo, ainda naquela noite, até o hotel onde se hospedara o Mestre, para que o respeitável ancião me ajudasse a contar a tão terrível perda ao meu cliente e amigo. Entretanto, o cansaço me fez adormecer no sofá. Tive sonhos sobressaltados. Passei toda a madrugada com a sensação de que estava sendo vigiado. Hoje conheço bem essa linguagem dos pressentimentos.

Há situações de alerta do corpo físico, que antes de serem chamados, equivocadamente, de estresse, deveriam ser denominadas de eutresse, ou seja, o bom estresse, estado de vigília em que a nossa fisiologia, ou melhor, nosso lado animal, produz a adrenalina necessária para a nossa própria defesa. Dito isto, dormi com um olho fechado e outro aberto, como dizem, com sapiência, os mais velhos.

No dia seguinte, não sem certo desânimo, arrumei as coisas na oficina e retomei o trabalho. Estava, assim, entretido na minha faina e nos meus pensamentos, quando, cerca de duas horas após o meio-dia, a campainha do famigerado instrumento de Graham Bell, ressoou, feito uma araponga estridente, na parede do corredor. Arranco o pesado monofone da base, contrariado, e o levo ao ouvido. Era o Melquisedec, preocupado com uma notícia da gazeta vespertina. Nas docas, cedo de manhã, fora encontrado, agonizando, um homem, em indumentária de origem árabe, sem passaporte, e sem nenhum documento que o identificasse, carregando um alforje cheio de dardos, como os que os silvícolas usavam para passarinhar. Como se tratava de um de seus irmãos de raça (Melq era descendente de libaneses), essa notícia chamou a sua atenção; fez alguns comentários sobre a violência em nossa cidade, no entanto, o que ele queria mesmo era saber da sua encomenda.

Gaguejei. Não só pela embaraçosa resposta que tinha a dar ao meu estimado amigo sobre o sumiço do livro, mas, pela notícia inesperada. Um árabe agonizava, no cais do porto. Decidi ir até lá. Precisava deslindar aquele estranho fato. Sem querer eu estava envolvido em um caso de roubo de obra rara e, quiçá, de homicídio. Precisava me apressar. Quem sabe eu ainda alcançasse o paquete no porto, para indagar do Mestre, a razão daquelas cousas misteriosas em torno de um livro e de minha pobre vida. Dei uma resposta evasiva ao meu bom amigo. Algo como um está quase pronta, tua encomenda, ou coisa do gênero. Tomei do chapéu e da bengala e, atravessando a passos largos a ponte Princesa Isabel, rumei para o cais do porto.


Dei com os burros n’água. O agonizante já não estava por lá. O paquete também não. Confirmei o embarque do Mestre, pois já imaginava ser ele o árabe agonizante. A Capitania dos Portos me informou que se a vítima fosse uma autoridade do porte do Venerável, toda a cidade já saberia. Todavia, inquirindo alguns estivadores e desocupados do porto, fui informado de que o desgraçado era apenas um homem de turbante, que devia ter sido atacado por ladrões, coisa muito comum nas docas, lugar de gringos à busca de sexo, contrabandistas e outros meliantes. Como o rosto estava muito arranhado, alguém aventou a possibilidade de ter sido briga com mulher-dama, ou seu gigolô, coisa também muito comum no submundo do cais do porto. Eram muito plausíveis, as versões dos populares. Mas havia um detalhe. Um detalhe que só eu conhecia. A notícia do jornal falava de um alforje com dardos. Por essa razão, eu precisava ter visto o infeliz agonizante.

Um dos estivadores me disse que o homem fora apunhalado, mas não morrera, e que os policiais o levaram, numa ambulância, com destino ao Hospital Pedro II.

Retornei pela ponte Maurício de Nassau, cortando caminho, na direção daquele famoso nosocômio. Uma revoada de pássaros atravessou o Capibaribe, indo pousar nos oitizeiros da outra margem. O Recife ainda tinha passarinhos, por esse tempo. As praças e os quintais arborizados eram o habitat de canários, galos-de-campina, curiós e azulões. Não havia tantos pombos e pardais, como hoje em dia.

Antes de ir ao hospital, passei na Livraria, e resolvi confessar tudo ao Melquisedec. Mesmo chocado com a minha história,  e lamentando muito, pois aquele talvez fosse o único exemplar do Colóquio, em toda a América do Sul,  o bondoso libanês, em atenção a uma amizade de quase dez anos, tomou de seu chapéu, deu-me o braço, e seguimos juntos até o logradouro dos Coelhos, onde ficava o velho Hospital Pedro II.

Descemos pela Rua Barão da Vitória, cruzando com mascates e caixeiros, naquela azáfama própria do comércio crescente do Recife, que, na época, ainda era a 3ª cidade do Brasil. Na ponte da Boa Vista, alguns mendigos nos estenderam cuias e chapéus. Depois, topamos com um estranho homem do realejo, que nos vendeu as sortes. Melq brincou com o aspecto bizarro daquele sujeito nanico, com seu macaco, um tanto ou quanto grande demais para sentar sobre seu ombro. Realmente, não era um mico, um sagüi, o símio que o ajudava em seu brincante. Percebi que aquele vendedor de sortes nos fitava, entre curioso e sisudo, e fitei meus olhos nos dele, buscando algo em sua íris. O olhar desses charlatães costuma ser enigmático, compondo o disfarce que lhes ajuda a lograr a sua clientela. Meu papelote da sorte dizia, em letras esverdeadas: Cuidado, a água toma a cor de seu recipiente.

 Teve pelo menos o bom gosto de copiar um provérbio árabe, disse-me Melq, orgulhoso de sua gente.

Adentramos o imponente Hospital, herança boa do ocaso da monarquia brasileira. Merecida, a homenagem, no seu nome, ao segundo Imperador do Brasil.

A imprensa marrom já estava por lá, apinhando os corredores. O homem ainda estava vivo. Mas havia um obstáculo. Os homens da polícia nos impediram o acesso à enfermaria. De nada adiantaram os rogos do Melquisedec, dizendo-se conterrâneo do forasteiro. A ordem era severa. Ninguém poderia se aproximar do estrangeiro.

Já tínhamos decidido nos retirar, quando, por um desses lances da fortuna, surge o Horácio Neves, grande amigo nosso e cliente da Livraria do Melq, que sempre lhe fiava os folhetins, para alegria da sua bem amada esposa, a distinta Sra. Eulália Neves, leitora assídua dos romances de Hugo, Machado e Perez Escrich.

 Que fazes aqui amigo Horácio, pergunto-lhe. E como vai Dona Eulália?
 A Lalinha vai muito bem, obrigado! Estou aqui a serviço da Inspetoria de Polícia. Fui nomeado Escrivão ad hoc, nesse caso do cais do porto.

Era tudo o que nós precisávamos. As portas se abriram. E, em dois tempos, ouvimos inúmeras versões e detalhes da cena do crime. Um dos detetives, o mais simpático e bem falante, narrou-me um pormenor que anotei em uma caderneta que sempre trago comigo. Dei-lhe o sugestivo nome de caderno de notas do imprevisto.

 O turco, disse-me ele, balbuciou três palavras em um inglês arrastado: moon, key, and man. Ou seja: lua, chave e homem. Isso me parece um indício importante!

No entanto, para o Inspetor Chefe, que nos foi apresentado pelo Horácio, seu subordinado andava lendo muitos contos policiais. Garantiu que aquele não passava de mais um caso comum da noite do porto do Recife. Alguma rameira, aliada a seu cafetão, ou a seu gigolô, teria tentado assaltar o infeliz, que reagiu e foi esfaqueado. Nada mais do que isso.

Não nos permitiu, no entanto, adentrarmos ao lugar onde se achava o doente. Alegou que os médicos recomendaram repouso absoluto. O homem tinha um ferimento sério nas costas. Arma branca. Ademais, disse-nos, o antipático Inspetor, que nós não tínhamos credenciais da polícia, nem da justiça, para estarmos ali futricando. (sic)

Ouvindo essas palavras, resolvemos nos retirar. A noite vinha chegando e, em verdade, uma lua enorme vinha surgindo por trás dos velhos pardieiros da Rua Velha. Melq vinha calado e eu também. Uma coisa me intrigava em tudo aquilo. Os dardos. Sim, os dardos seriam o nexo entre aquele agonizante e o sumiço do livro raro. Que leitura se poderia fazer desse indício? Comecei a lembrar de certo conto policial, um dos primeiros do gênero no mundo, em que um misterioso assassinato de duas mulheres em Paris é deslindado pela perspicácia de um paisano, pondo em vergonhosa situação toda a polícia parisiense. Ri-me por dentro, apesar de que a situação não merecia risos. A meu juízo, aquele Inspetor-Chefe não sabia da missa um terço. E deveria ler contos policiais, como o seu subalterno, pois sua visão não ia além da ponta do nariz.

Quando regressávamos ao centro da cidade, o homem do realejo vinha cruzando a ponte Velha, em sentido contrário. O macaco, inquieto, rosnou para o Melq, que, zombeteiro, lhe estirou a língua. O homem do realejo nos encarou, contrafeito, e resmungou xingamentos em uma língua que não consegui entender. Apesar do dia difícil, estávamos descontraídos. Então, resolvemos dar uma esticada ao Bar Savoy, pois o chopp gelado e os poetas, que ali faziam seu refúgio, nos alegrariam a alma.

Mais tarde, já de volta ao conserto dos alfarrábios, pois um serão se fazia necessário para dar conta do serviço, fiquei matutando nos acontecimentos do dia. Que detalhes me estariam escapando? Que relação haveria entre lua, chave e homem. Seria a lua, a chave do sentido. Fui até a janela da oficina. Uma lua enorme brilhava no céu do Recife. Coloquei, na pequena vitrola, a Sonata ao Luar, 1º movimento, de Ludwig van Beethoven. Fiquei ali, olhando a lua, entretido em minhas elucubrações, como a brincar de Monsieur Dupin. Súbito, um estalo me trouxe à mente as palavras proferidas pelo Mestre Al-tayr, ao examinar de perto as plumas do dardo. Dizia ele: Acôntio e não zarabatana. O que significava aquilo? Que enigma escondiam aquelas duas palavras? Fui ao meu velho Dicionário Etimológico, e lá estavam os verbetes:

Acôntio: do grego Akóntiun, pequeno dardo usado pelos antigos gregos.

A noite alta e a cerveja me levaram, estafado, a recostar a cabeça em almofadas. Entreguei-me mansamente aos braços reconfortantes de Morfeu. A sonata de Beethoven enluarou meus sonhos e comigo dormiria, por mais uma noite, o enigma dos dardos.
Zarabatana: do persa, através do árabe vulgar, zarbaTãnã; ou do árabe clássico, zabaTanã, “tubo para matar pássaros”.


***

Dias depois, um telegrama do Mestre Al-tayr me chegaria pelas mãos do confrade Luiz de Mélo. Aqui transcrevo o teor daquela mensagem, que me ficou na gaveta da memória:


Confrades,
Saúde, paz e fraternidade a todos.

Chegarei breve pt Preocupado envolvimento restaurador com lutas internas irmandade pt Suplico urgentes medidas segurança sua vida pt Persas e gregos disputa fratricida pt Espião ainda em Recife pt Livro não deve sair da cidade pt Cuidado pt Ajudem nosso homem hospitalizado como puderem pt Ele sétimo guardião segredo comunidade pt Procurem Dr Rushansky, médico judeu, recomendado pela embaixada irá ajudar pt
P. S.: Insistam convite Mestre Ofício Encadernador ser membro da Corporação pt Assim poderemos revelar coisas ocultas pt Creio correr risco integridade física pt
Despeço-me pt
Ms. Muhammad Ali Ben Al-tayr:.
M. D. R. do C. E. U*. pt
Saudações.


...Li e reli, diversas vezes, aquele texto telegráfico. A essa altura, já não olhava ao meu redor, com os olhos limitados de um simplório restaurador de papéis. Algo em minha visão começara a se expandir. Comecei a perceber sinais, ruídos, cheiros, semblantes, coisas que até bem pouco tempo me eram totalmente invisíveis aos olhos. Ia dizendo: aos olhos da alma. Por que agora concebo que temos sentidos mais profundos, como aquele terceiro olho, dos místicos. Analisar, escrutinar apenas, com a razão especulativa, não é tudo aquilo de que é capaz o observador. Não há só cérebro no homem. Algo maior espreita dentro de nós: a consciência cósmica. Hoje posso afirmar isso, sem pestanejar. Acatei os ritos esotéricos, que há muito me eram apenas como que excentricidades, coisas de provectos e ociosos senhores. Porém, naqueles dias, apenas começava a desabrochar em minha alma, ainda insipiente, o insólito fenômeno da anagnosia.

Não zombem de mim, leitores e leitoras, trazidos pelo acaso, pela curiosidade, ou mesmo, pelo destino, a essa humilde narrativa. Não há nada de sobrenatural no que passarei a lhes contar. Pois, sem tardança, eu conseguiria desembaraçar todo o mistério que tinha surgido em minha vida, a partir do sumiço de um simples livro, não tão simples, por ser raro, mas, era apenas, um livro, entre tantas raridades que já haviam passado por minhas mãos. Todavia, só deslindei toda essa trama, quando abri minha percepção para essa espécie de sentido adormecido, que todos temos, mas negamos: a faculdade de leitura supranormal de uma semiologia que está inacessível aos sentidos físicos.

Sei que muitos já devem estar rindo. Mas, paciência. Nem todos estão preparados para essas experiências. Decerto, como dizia um sábio escritor, em meados do século XIX, mutatis mutandis, a capacidade de analisar, desembaraçar, deslindar, quando possuídas em grau incomum, faz do seu possuidor, um alvo fácil da curiosidade pública, motivo de mofa, ou de espanto. Geralmente, o sujeito torna-se pitoresco para os céticos, e, para os muito crédulos, um verdadeiro hierofante.

Aqui não se trata nem de uma coisa nem de outra, senhores. Nem sagrado, nem profano. Nem tanto, ao mar, nem tanto à terra.

Decerto, o decifrador, com tais poderes, ama os enigmas, os paradoxos, e os hieróglifos; exibe, na solução de cada mistério, um grau de exatidão, quase matemática, que parece sobrenatural às pessoas de compreensão mais ordinária. Seus resultados, ainda que obtidos através da própria alma e essência do método, apresentam, de fato, todo o aspecto da intuição. Entretanto, repito, há algo mais entre o céu e a terra, do que julga a nossa vã filosofia.

Bem, foi assim que comecei, em silêncio, e, por minha conta e risco, a realizar uma série de observações e inferências sobre o caso do livro roubado. Descobri que as fontes da elucidação não são apenas múltiplas como também multiformes. Não apenas intertextuais, como também interdisciplinares, e calcadas em muitas áreas do conhecimento humano. Além disso, frequentemente se escondem em recessos da mente, quase inacessíveis à compreensão das pessoas comuns.

***

O longo telegrama parecia-me, a cada leitura, mais enigmático. O fato de eu não pertencer ainda à Irmandade me negava aspectos que só hoje domino. Isso tornava minha tarefa ainda mais excitante. Debrucei-me dias e dias no esquadrinhamento daquele texto. Enquanto isso, a minha mente saltitava entre os nexos dos fatos a ele conectados. O enigma era como uma rede, cujos nodos foram se desenredando aos poucos.

Mas, analisemos, de uma vez, o tal telegrama:

A frase inicial “preocupado envolvimento restaurador com lutas internas irmandade”, era a revelação de que uma crise interna estava acontecendo no seio daquela sociedade secreta. Isso estava evidente. O que não estava evidente, para mim, era o meu envolvimento nisso. Nem tampouco o motivo pelo qual eu corria risco de vida.

Essa afirmativa estava reforçada pela outra, que vinha logo em seguida: “persas e gregos disputa fratricida”. No entanto, ressalte-se que nessa construção já aparecem novos elementos. A luta fratricida, ou seja, a contenda entre irmãos, se dava entre duas facções, a dos persas e a dos gregos. Isso nos levaria a interessantes conclusões, fora do texto, ou seja nos indícios não-textuais, que vos apresento em seguida.

Alguma relação haveria entre a origem dos dardos, que etimologizei acima, e a definição das facções rivais. Ou seja: zarabatanas = persas. Acôntios = gregos. Parece algo óbvio, mas, em decifrações, não se deve, (hoje eu sei muito bem), confiar nas obviedades. Além disso, podem-se fazer ilações intermináveis sobre esses indícios. Uma delas é o fato de que o verbete zarabatana é árabe e não, persa. E que acôntio é grego antigo, ou clássico. Seria difícil se chegar à conclusão de que duas facções intelectuais, dentro de uma sociedade secreta, lutavam por seus idiomas, ou por extensão, defendiam os conhecimentos de cada cultura? Por metonímia: Avicena versus Aristóteles, ou, conhecimento árabe contra o helenismo. Por aí já se pode ver quantos nódulos existem nessa rede de intrigas. Porém, podem ser nós apenas perfunctórios. E o que se quer para deslindar um mistério é sempre ir direto ao ponto central da questão, ao nó górdio. No entanto, vamos por partes, como diria o magarefe.

Passemos à próxima frase.

Outro enigma se impõe nessa pequena e crucial revelação: “espião ainda no Recife”. A que se segue uma interessante advertência: “livro não deve sair da cidade”. Duas inferências quanto a livro e espião: os dois devem estar juntos, é a primeira. Decorrente dessa, a segunda: o espião deve ter roubado o livro raro. Agora me advém uma outra, que em verdade foi uma dedução do meu bom e paciente amigo Melq:

 Procuremos antes um espião, habib! Pois, apanhado o espião, acharemos minha obra rara.

Aqui se faz necessária uma reflexão. Como estando tão longe, o Mestre estava sempre a par do que ocorria aqui na província. Alguém o deixava informado dos fatos. Isso era quase certo. Mas, quem? Revelarei esse informante ao fim da narração desses fatos. Mas adianto que ele é tão cristalino e óbvio, apesar de insólito, que me passou despercebido durante toda a minha investigação.

De resto, do que li no telegrama, só devemos guardar duas pistas: que o homem atacado no porto era o sétimo guardião do segredo. E que um médico judeu estava disposto a ajudar na sua cura.

Além disso, a condição para que me revelassem o segredo do sumiço do livro era que eu me tornasse membro da irmandade secreta.

***

“Creio correr risco integridade física”.

Não penseis que esqueci dessa frase final do telegrama, tantas vezes lido. É que um fato muito sério iria ocorrer em alguns dias. Creio que, passados trinta dias, pois, como é sabido, principalmente, pelas senhoras leitoras, os paquetes são como as regras: só atracam no porto de mês em mês.

Pois bem, o horrível ocorrido se deu mesmo ao fim de trinta dias. O temor que estava expresso pelo venerável Mestre, ao final de seu telegrama, fazia sentido. Outra tentativa de assassinato, agora contra aquele venerável senhor, se daria em seu desembarque, no Recife.

No cais, a algaravia ansiosa da multidão que aguardava por parentes: bajuladores aguardando por políticos; caixeiros, por comerciantes, e milicos, por autoridades, todos desembarcando do paquete, egressos da capital federal. Aproveitando-se do anonimato, um homem branco, de estatura mediana, infiltrou-se, furtivamente naquela aglomeração e, quando da passagem do Mestre Al-tayr, desferiu-lhe, covardemente, uma profunda punhalada em suas costas. Ouvem-se gritos, gemidos das senhoras, desmaiando, uma algazarra. Apoiado pelos seus confrades, o Mestre cambaleante, olha para o céu e reza, em frases cabalísticas. Os jornais do dia seguinte traduziriam essas súplicas, como sendo:

“Alah, perdoa esse irmão por sua ignorância da tua Lei.”

Era a segunda ocorrência criminosa contra estrangeiros, em curto intervalo de tempo. Isso geraria um estardalhaço em nossa pacata metrópole, que ainda guardava laivos de província. Devido à estatura política do Venerável e à sua posição dentro da organização, até mesmo o Interventor Federal determinou providências para o socorro do Mestre, que diferentemente do árabe desconhecido, foi conduzido, em carro oficial, ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia, no lugar chamado Santo Amaro das Salinas, ficando internado em enfermaria, reservada, costumeiramente, às autoridades enfermas, de nosso Estado.

O caso do honorável Mestre era muito grave e exigia cuidados especiais. Os melhores cirurgiões, alguns ligados à Confraria, acorreram ao hospital. Dr. Rushansky era um deles. Mas, apesar de todos os cuidados, o ferimento se agravaria, rapidamente. O Mestre Al-tayr teve de ser colocado em coma induzido. A consternação era geral, entre os membros do Círculo Esotérico. Enquanto isso havia um criminoso à solta, de posse do livro do meu amigo Melq, e, talvez, com intuito de desferir sua próxima punhalada em outro membro da sociedade. Pior: poderia estar à minha procura. Segundo o telegrama, eu também corria risco de vida.

O meu bom e paciente amigo Melquisedec, me tranqüilizava, dizendo que, se eu nem era da irmandade, nada haveria de me acontecer. E que,  louve-se o seu gesto,  abriria mão de seu livro raro, se esse fosse o motivo de meu desassossego.

Mas, se o próprio líder espiritual da irmandade deles fora atacado tão covardemente, como iria eu escapar de uma agressão. Pela astúcia. Ouvi um sopro em meus ouvidos. Juro. Alguém falou. Pela perspicácia. Ouvi de novo. T’esconjuro! Estaria eu ouvindo vozes.

Pois, foi assim, ouvindo vozes feito um biruta, que tive a feliz idéia, um insight, que iria resolver aquele mistério de uma vez e, se tudo desse certo, prenderia também o ladrão.

 Melq, disse eu, você tem amizade com os donos dos vespertinos da cidade, né? Sei que tem. Então me publique um reclame que lhe vou ditar.

Aqui preciso fazer um parêntese, pois devo esclarecer a origem da voz ultrafânica que, a partir de então, começaria a ouvir. Foi essa Voz quem me ditou o anúncio que apareceria naquela tarde, em todos os jornais do Recife.

Mais acima, vinha eu lhes contando sobre a ampliação da minha percepção sobre as coisas ao meu redor. Pasmem. Comecei a ouvir umas vozes, que, inexplicavelmente, tinham o timbre de passarinhos. De passarinhos? Ora direis, ouvindo pássaros? Certo perdeste o senso. Sim. Isso mesmo. Ouvindo pássaros. Não sei se canários, sabiás ou bem-te-vis. Não sou versado em aves canoras. Mas a voz que me ditava as ações, a partir dali, vinha mesmo era como que um gorjeio, doce e manso. De rouxinóis? Não. Não era voz de ave tão pequena. Ah, era isso! Pitiguaris. O sugestivo canto dos pitiguaris se ouve por toda a cidade maurícia. Parece até que os primeiros recifenses estavam tão acostumados com a chegada de forasteiros, que deram aos pitiguaris alguns onomatopaicos apelidos:

“Advinhe-quem-vem-hoje,
gente-de-fora-fora-vem-aí,
gente-de-fora-já-chegou.
Pitiguaris, pitiguari...”

Para lhes ser sincero, não eram dos pássaros, as mensagens. Em verdade, vos digo que era um Ibbür, aquilo que eu ouvia. Hoje entendo perfeitamente, e mais tarde vos explico o que vem a ser isso. Mas, agora destrinchemos de vez esse caso, que já se alonga além da conta:

O anúncio que ditei para o habib Melq, logo estava estampado nos vespertinos da cidade, e trazia o seguinte teor:

Vende-se exemplar raríssimo do Colóquio dos Pássaros, 2º volume, do místico persa Farid al-din Abu Talib, edição comentada e glosada em galego-português, pelo cabalista Ibn Gurion:.. Esse exemplar traz escólios, que revelam o segredo de uma antiga ordem secreta da Grécia, apenas esboçado no 1º volume. Quem se interessar pode procurar, à Rua do Livramento, 165, 1º andar, o buquinista Melquisedec. Preço a combinar.

O pobre Melq relutou em publicar tal reclame. Mas eu lhe persuadi de tal jeito, que ele aquiesceu, noblesse oblige. Era a vida do seu melhor amigo que estava em risco. Um homem de nobre estirpe, o libanês.

Fechei a oficina por uns dias e fiquei de campana na livraria do bom libanês, comprada a um comerciante falido, aí pelos idos de 1922. Era um velho pardieiro, desses que hoje abrigam lojas de confecções, nas ruas estreitas do bairro de São José. Havia uma varanda, com uma bela vista do Cais de Santa Rita, que o Melq apelidara de meu balcão moçárabe. Daquela sacada, fiquei espreitando o nosso único comprador. Pois só haveria um interessado no livro. E eu já tinha quase certeza de quem era. O enigma já tinha sido elucidado em minha cabeça. Não demorou, pois, no dia seguinte, eu o vi rondando a loja. Era ele. Eu estava na pista certa. O alçapão estava armado. Faltava só o incauto passarinho nele entrar. Melq, curioso, me pedia evidências. Eu disse, apontando para o suspeito, que, do chão, não nos podia ver:

 Teu livro está a dois passos de ti, amigo. Calma!
 Como provas isso? Ele me parece tão inofensivo.

Puxei do bolso o meu indefectível caderno de notas do imprevisto:

 Leia esses apontamentos, que tive o cuidado de guardar, quando da visita ao agonizante, no Pedro II. Lembras? O que lês aí?
 Nada demais: Moon, key and man.
 Tua pronúncia é muito boa. Mas se estivesses arfando, depois de tomar uma punhalada nas costelas, como pronunciarias a palavra macaco nessa língua.

Nem deu tempo do Melq pronunciar a palavra, mon...key, pois o homem do realejo irrompeu no seu estabelecimento, armado de uma pequenina alfanje e bradando, em mal português:

 Entregar mio segundo libro! Bamos logo!

O pássaro afinal caiu na armadilha.

 You are under arrest!* Bradou Horácio Neves, saltando de trás de uma estante e, exibindo, ao mesmo tempo, seus dotes lingüísticos e a pistola, com que apontava firmemente para a cabeça do meliante.

Num repente, arranquei das mãos do espião grego, a caixa do realejo, enquanto o agente bem falante, que acompanhara o Horácio, na tocaia, desarmou e meteu em algemas o surpreendido malfeitor.

 Go to barracks! Determina o Escrivão Ad Hoc, apontando para a porta, teatralmente. Não queria perder a ocasião de exibir o curso de Inglês por correspondência, que acabara de lhe enviar o diploma. O larápio, algemado, foi conduzido, pelos tiras, ao Quartel da Brigada, no antigo Pátio do Paraíso.

Anos depois do ocorrido, soube que aquele jovem agente chamava-se Edgard Pontes e que fora promovido, sob os auspícios da nossa Sociedade Secreta, a Inspetor Geral de Polícia da Capital, substituindo seu antigo chefe.

***

Em poucas semanas, o Mestre e o outro árabe, o Guardião do Segredo, estavam recuperados. Coincidentemente, as vozes dos pássaros foram sumindo da minha consciência. Coisa que só depois de ingressar na irmandade eu saberia a causa.

Na qualidade de membro da ordem secreta, não devo revelar certas coisas do que ali se passou. Contudo, vou lhes satisfazer a curiosidade com alguns arremates a este conto, para que não lhes pareçam um engodo as faculdades supranormais, das quais, transitoriamente, me vi investido.

***

Recuperada a saúde de meu bom e venerável Mestre Al-tayr, uma grande solenidade aconteceu no Círculo Esotérico do Pensamento. Tratava-se da nomeação definitiva de dois novos membros, no serviço de Guardião do Segredo. Ali estávamos, ajoelhados diante do Conselho Supremo, eu e o meu dileto e paciente amigo Melquisedec. Duas medalhas de bravura e honra ao mérito foram colocadas em nosso avental. Eu conquistara a minha pela prisão do espião grego, que roubara o livro venerando. E o Melq, pelo desprendimento que teve ao doar aquela obra rara, de preço incalculável, aos cuidados da Confraria. Percebi, na face de meu bom e paciente amigo, uma lágrima escondida. Sei o motivo do choro, senhores: é que, enquanto a solenidade tinha curso, numa pira, como aquela do fogo olímpico, crepitavam as páginas amareladas e valiosas do Colóquio dos Pássaros. As chamas selariam, de uma vez por todas, o segredo das glosas, anotadas a nanquim, nos idos de 1808, por um honorável membro da Ordem, que viera transferido para o Brasil, com a coorte fugitiva de Dom João VI.


O resto, os senhores já deduziram: a obra rara estava dentro da caixa do realejo. O macaco foi o causador da bagunça na minha oficina, no dia do roubo, já que não havia motivo plausível para aquela desarrumação, uma vez que o livro descansava sobre a bancada, ao alcance de qualquer um. Do macaquito, também, foram os arranhões no rosto do Guardião do Segredo, atacado pelo bicho e seu dono, no cais do porto. O astuto e bem falante Inspetor Edgard Pontes ouviu, mas, não entendeu que o Guardião falara arrastadamente, “macaco e homem”, “monkey and man”, na língua inglesa. Coisa que não carece de dotes supranormais, para qualquer cristão decifrar.

***

Por fim, esclareço o Ibbür.
Segundo Isaac Luria, cabalista de Jerusalém, no século XVI, chama-se, Ibbür,“a uma variedade de metempsicose em que o espírito de um Ancestral, ou de um Mestre, pode introduzir-se na alma de uma pessoa, para reconfortá-la ou para instruí-la”.
(Citação extraída de The Persian Mystics: Attar, 1932, monografia de SMITH, Margaret, apud, BORGES, J. L., in The approach to Al-Mu’tasim, 1941, pp. 39, 40).

Explico: quando surge uma ameaça extrema, que ponha em risco uma sociedade esotérica, um Mestre, já falecido, ou mesmo distante, pode usar o dom de se comunicar, telepaticamente, com um Escolhido, para instruí-lo e, assim, proteger o segredo da ordem. De modo que eu recebia, através dos pitiguaris, as mensagens do Mestre Al-tayr, cuja principal habilidade, entre sua gente, era adestrar falcões peregrinos, para a volataria. Além disso, o fato de que ele estava em coma, isto é, semimorto, potencializava o uso de suas poderosas faculdades. Essa também era a forma com que ele sabia, à distância, tudo sobre minha investigação. Portanto, fica respondida a questão: quem informava ao Mestre, no distante Rio de Janeiro, fatos ocorridos aqui? Eu mesmo, o Escolhido, sem ter consciência disso, através do psicofonico colóquio com os pitiguaris.

Sei que alguns leitores religiosos, (respeito a opinião de todos), irão desdenhar dessas derradeiras elucidações. Porém, se acreditam que o Santo de Assis, Francisco Bernardoni, tinha colóquios com as avezinhas, com as plantas e com os animais, devem entender que essas coisas podem estar ocultas a muitas pessoas, mas, indubitavelmente, estarão sempre na orla do possível.

Quase cego e muito avançado em dias, não careço de iludir mais ninguém. Cada um acredita no mundo que pode conceber. Nunca é demais citar, senhores, aquele aforismo oriental, que ilumina a verdade de cada um, quando nos adverte que: a água toma a cor de seu recipiente.


*N. do A.: essa frase é apenas o nosso teje preso, em inglês.

*N. do A.: Mui Digno Regedor do Circulo Esotérico Universal.


Eurico
na cidadela do Al-Raçif,
Ano da Graça de 2007, aos 15 dias do mês de novembro.

Fraternalmente pt