Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, janeiro 23, 2014

CARNAVAL DO RECIFE - a Dança, a Música, a Língua (1)


Título: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". 
Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995. Agradecimentos à Dra. Ana Balmori, que primeiramente estudou os motivos musicais dessa fonte e que possibilitou a sua consideração nas sessões de Lagos e Coimbra.

 
O modo português de festejar está bem descrito em antiga crônica de João de Barros, ao tratar da espetacular partida da frota de Pedro Álvares Cabral, em 1500:

"A qual despedida, geralmente a todos, foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por El-rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos em bateis, que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas coisas, eram as trombetas, atabaques, sestros, tambores, flautas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas, que depois a seguiram, porque, para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar."
(João de Barros, apud HOMO LUDENS NA ÉPOCA DAS DESCOBERTAS, Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, Conferência em Coimbra, 1995)

Sem embargo da violenta cobiça que motivava as “grandes navegações”, as novas colônias conquistadas logo iriam conhecer o lado festeiro desse povo, que, para afugentar o tédio daquelas longas viagens, portavam instrumentos musicais, do mesmo modo pelo qual, nos dias atuais, trazemos, por exemplo, um DVD portátil, em nossas viagens cotidianas. Foi assim que esses navegantes nos trouxeram sua dança e sua música, em folguedos que até hoje costumam alegrar os nossos tristes tropiques.
Prova de que esses instrumentos pastoris cruzaram o Atlântico está na Carta de Pero Vaz de Caminha, pela qual se descreve a D. Manuel, o "descobrimento" do Brasil. Relata o famoso escrivão que, depois da missa de Páscoa, tendo em vista os costumeiros folguedos da época, um gracioso marinheiro executa saltos reais ao som de uma gaita e participa das danças dos aborígenes. Esse encontro musical, segundo Caminha, foi motivo de muita alegria:

"(...) passou-se então além do rio Diogo Dias, que veio de Sacavém e que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo hum gaiteiro nosso com uma gaita e meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real de que se espantavam e riam e folgavam muito."
(Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel)

Diogo Dias, pois, era o nome de nosso primeiro brincante. Na nova terra, desde a primeira páscoa, já se dançava a nossa ciranda-de-praia. Nos dias de hoje, quem viajar pelo Brasil encontrará, de norte a sul, essa herança musical e coreográfica dos lusos: haja marujada, folia de reis, pastoris, serenatas e... o entrudo...
Ah, o entrudo! Esse milenar folguedo é o que mais me encanta. Mormente, na merencória folia dos seresteiros de pau e corda, os chamados blocos carnavalescos líricos.
Esses harmoniosos blocos líricos, bastiões do carnaval do Recife, evocam e preservam não só o modo português de festejar, seus folguedos e danças de celebração, mas guardam as profundas nuanças líricas, entranhadas na alma dessa Língua que também veio com as caravelas.

Revisitando, (como sempre faço, nesses dias que antecedem a folia), as composições de antigos blocos recifenses, reencontro essas canções dolentes, perpassadas de uma triste alegria, de uma saudade calcada em algo não-vivido, e que, além disso, primam por letras vazadas em bom vernáculo, de onde vem o puro olor, o cheiro bom, o aroma dessa última flor neolatina, em poesias pejadas do lirismo e da ternura da velha e boa língua-mátria.

Sobre isso, vale a pena citar Gilberto de Mello Kujawski, in "Fernando Pessoa, O Outro", quando afirma que "o dizer português é sempre vizinho da efusão lírica, pronto a vibrar em toda a escala de íntimas lamentações e exultações, de secretos cuidados e enternecimentos próprios às fundas confidências."

Todavia, não é só esse aspecto que deve ser revisitado nos blocos líricos.
Atentem bem para a semelhança desses brincantes recifenses com as danças pastoris, com os cortejos órficos das festas quase-pagãs que aconteciam nas afastadas vilas campesinas da Luzitânia, e até mesmo nos átrios engalanados, nos velhos paços da corte portuguesa, essas danças profanas que estão implícitas na citação de João de Barros, transcrita acima. O Recife é uma cidade profundamente ibérica. E nossas danças, músicas e folguedos guardam a semelhança daqueles costumes lusos.

Regressemos, agora, a esse longínquo pretérito, acompanhando as palavras de um dançar dionisíaco, que nos chegaram através do léxico arcaico de outro cronista-narrador: Fernão Lopes.
Deitem os vossos olhos sobre esses vetustos vocábulos que abaixo vos apresento; soprem-lhes os fonemas e deixem emergir do inconsciente os albores do efusivo lirismo dessa Língua Portuguesa, em essa prosódia, “alongada e ondulante; com ondulações que se perdem ao longe" e, decerto, encontrarão as origens avoengas dos cortejos musicais de nossos blocos carnavalíricos:

Viinha elRei em batees Dalmada pera Lixboa, e saiam-no a reçeber os cidadãaos e todollos dos mesteres com danças e trebelhos, segumdo estomçe husavom; e el saia dos batees, e metiasse na dança com elles, e assi hia ataa o paaço. Paraae mentes se foi boom sabor: jazia elRei em Lixboa huuma noite na cama, e non lhe viinha sono pera dormir e fez levamtar os moços e quamtos dormiam no paaço, e mandou chamar Joham Mateus, e Lourenço Pallos que trouvesem as trombas de prata, e fez açemder tochas, e meteosse pela villa em damça com os outros; as gentes que dormiam, sahiam aas janelas, veer que festa era aquella, ou porque se fazia; e quando virom daquella guisa elRei tomarom prazer de o ver assi ledo; e amdou elRei assi gram parte da noite, e tornousse ao paaço em damça; e pedio vinho e fruita, e lançouse a dormir. (Crónica de D. Pedro I, Barcelos - 1932, pp 42-43, apud FERNANDO PESSOA, O Outro, G. M. Kujawski, pp. 25,26)





Evoé, Flores do Capibaribe!
Carnaval chegou!






















Eurico
blogador e folião. **********************************************************************
Ilustração e algumas citações:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm

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Frevo de Saudade - Aldemar Paiva - (Coral do Bloco da Saudade)

Obs.:
Como é difícil encontrar a genuína música pernambucana na internet!
Carecemos pintar nossa aldeia, se quisermos ser universais, como aconselhava Leon Tolstoi.

Achei mais uma:
Último Regresso - Getúlio Cavalcanti - (Coral do Bloco da Saudade)



E mais essa:
Sabe lá o que é isso, de João Santiago.
(Hino dos Batutas de São José e dos casais enamorados)

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