Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, janeiro 23, 2014

CARNAVAL DO RECIFE - a Dança, a Música, a Língua (2)

Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa - século XV:
"Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões".
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995): 
Principal detalhe para fins de análise cultural e de sentido. As figuras sobremontadas e carregadas por nativos são conhecidas da tradição ibérica e do populário católico transplantado para o Novo Mundo.  


Nota inicial (sobre a figura acima): 

Quem conhece o carnaval de Olinda, há de lembrar do calunga chamado de Homem da Meia-noite, um quase-totem ambulante, que é carregado nos ombros pelas ruas da cidade alta, na madrugada do sábado para o domingo de carnaval. Percebam, pois, pela tapeçaria acima, o que há de Ibéria em nossa carnavália. 

Pois bem:
Eu dizia, na postagem anterior, que o Recife é uma cidade profundamente ibérica. Pode isso parecer ululantemente óbvio, sabendo-se que todo o país já foi um dia Reino de Portugal e Algarves. No entanto, comparando a nossa capital com outras grandes cidades do Brasil, por suas manifestações culturais, ficará evidente o quão mais portuguesa do que as outras é a nossa Arrecifes dos Navios.

Há poucos anos, movido de compaixão pelos menores de rua, um desembargador humanista e comprometido com a nossa cidade, resolveu fazer um resgate dessas crianças abandonadas, através da música. Lembrem que na Bahia, já faz algum tempo, os timbaleiros, os percussionistas, já tinham feito o mesmo com o projeto Olodum, tendo alcançado excelentes resultados na assistência aos pequeninos "capitães da areia". No Rio de Janeiro, de há muito se ouve o samba dos Meninos da Mangueira, inclusão social e divertimento ao mesmo tempo. Portanto, duas importantes expressões de cultura negra, uma baiana e outra carioca, ambas atuando em prol da inserção dos menores na vida social.

Bem, mas o que fez o nobre magistrado recifense para resgatar os infantes de nossas ruas?



Fundou a mais bela e virtuosa banda sinfônica infantil já vista em nossa cidade: a Orquestra Criança Cidadã, dos meninos e meninas do Coque. O Coque é uma antiga comunidade de carvoeiros, hoje favela urbana, com população carente e alvo de muita violência. Lá foi criada uma maravilhosa orquestra de pequenos virtuoses.

E aqui faço um alargamento da minha frase inicial: o Recife é bem mais do que ibérica, é profundamente européia.
Os meninos do Recife não batem em latas, em surdos, nem em timbales. Os violinos e cellos da Orquestra da Criança Cidadã enchem nossa alma de melancólica ternura. Isso é o Recife. Querem algo mais europeu? Os resultados são tão bons quanto os da Bahia e do Rio, diga-se de passagem. Mas, a forma de estruturar a ação é solene, racional e erudita: um desembargador e um maestro da sinfônica, juntos, lideram a excelente empreitada pelas crianças, nesse Recife europeu.

Maracatu


Agora, volvamos os olhos para a nossa maior expressão de cultura afro: o maracatu. Embora o ritmo das suas alfaias faça ecoar pelas nossas esquinas o mais visceral elemento negro, o que vemos nas ruas? Um majestoso cortejo, reis, rainhas, duques, duquesas, damas do paço e bonecas de cera, trajando a luxuosa indumentária das cortes européias. Eu sei, eu sei. Era a forma de resistência dos agrupamentos negros, que tinham no sincretismo religioso uma válvula de escape para sua própria concepção do sagrado.

Também, sei: O maracatu veio das Irmandades do Rosário dos Pretos e da festa do Rei do Congo. Mas, por que tão forte no Recife? Não seria a nossa alma ibérica envolvendo o corpo africano? Sei lá!



E mais, tem mais, tem o frevo, o frevo, o nosso frevo veio dos dobrados militares europeus, que, ao ter o andamento acelerado, e deu nessa gostosa e anárquica folia. Chego a sugerir que o passo já estava, embrionário, nos ditos saltos reais, executados por Diogo Dias, como consta na Carta de Caminha. Não lembra o passo (a dança) o saltitar do vira português, em ritmo apressado? Não lembra o passo um saltitar de bailarinos zíngaros?E o jogar de pernas da dança dos cossacos já era o passo?


E as fantasias multicores: dominós, pierrots, colombinas, arlequins, bufões, palhaços. Eis aqui toda a comédia dell'arte. Não é por acaso que o Recife é chamada de a Veneza Brasileira!




Finalmente, chego onde todos sabem que eu queria chegar. Nos maviosos blocos líricos do carnaval pernambucano.
No Rio de Janeiro, a velha guarda é do samba, na Bahia, do afoxé Filhos de Gandhi. Duas expressões puramente africanas.

Em Pernambuco,
a velha guarda é dos blocos carnavalescos líricos:

Ouçam trinar as requintas,
e florear os flautins.
Banjos, violões, bandolins,
em harpejos e dedilhados.
E um coro de vozes álacres,
senhoritas e senhoras a cantarolar modinhas,
feito cantigas de roda,
rondós, marchinhas,
cirandas.


Há algo mais europeu?
Recife tem esse nicho de poesia,
que se mantém muito vivo.
Não aquele Recife dos Mascates,
dos ideais libertários,
mas, o Recife do bom Sebastião, de Capiba.
Recife, de Manuel Bandeira.
Recife, ibérico, europeu.
Recife dos blocos líricos...
Recife, meu.
Recife, eu...


Fonte da imagem da tapeçaria:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm

Outras imagens:
recolhidas do Google.

CARNAVAL DO RECIFE - a Dança, a Música, a Língua (1)


Título: "Último pano do Cortejo Triunfal: Folias, Danças e Folgazões". 
Tapeçarias de D. João de Castro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Museu Nacional de Arte Antiga, 1995. Agradecimentos à Dra. Ana Balmori, que primeiramente estudou os motivos musicais dessa fonte e que possibilitou a sua consideração nas sessões de Lagos e Coimbra.

 
O modo português de festejar está bem descrito em antiga crônica de João de Barros, ao tratar da espetacular partida da frota de Pedro Álvares Cabral, em 1500:

"A qual despedida, geralmente a todos, foi de grande contemplação, porque a maior parte do povo de Lisboa, por ser dia de festa e mais tão celebrada por El-rei, cobria aquelas praias e campos de Belém, e muitos em bateis, que rodeavam as naus, levando uns, trazendo outros, assim serviam todos com suas librés e bandeiras de cores diversas, que não parecia mar, mas um campo de flores, com a frol daquela mancebia juvenil que embarcava. E o que mais levantava o espírito destas coisas, eram as trombetas, atabaques, sestros, tambores, flautas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura foi andar em os campos no apascentar dos gados, naquele dia tomaram posse de ir sobre as águas salgadas do mar, nesta e outras armadas, que depois a seguiram, porque, para viagem de tanto tempo, tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar."
(João de Barros, apud HOMO LUDENS NA ÉPOCA DAS DESCOBERTAS, Profa. Dra. Maria Augusta Alves Barbosa, Conferência em Coimbra, 1995)

Sem embargo da violenta cobiça que motivava as “grandes navegações”, as novas colônias conquistadas logo iriam conhecer o lado festeiro desse povo, que, para afugentar o tédio daquelas longas viagens, portavam instrumentos musicais, do mesmo modo pelo qual, nos dias atuais, trazemos, por exemplo, um DVD portátil, em nossas viagens cotidianas. Foi assim que esses navegantes nos trouxeram sua dança e sua música, em folguedos que até hoje costumam alegrar os nossos tristes tropiques.
Prova de que esses instrumentos pastoris cruzaram o Atlântico está na Carta de Pero Vaz de Caminha, pela qual se descreve a D. Manuel, o "descobrimento" do Brasil. Relata o famoso escrivão que, depois da missa de Páscoa, tendo em vista os costumeiros folguedos da época, um gracioso marinheiro executa saltos reais ao som de uma gaita e participa das danças dos aborígenes. Esse encontro musical, segundo Caminha, foi motivo de muita alegria:

"(...) passou-se então além do rio Diogo Dias, que veio de Sacavém e que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo hum gaiteiro nosso com uma gaita e meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real de que se espantavam e riam e folgavam muito."
(Carta de Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel)

Diogo Dias, pois, era o nome de nosso primeiro brincante. Na nova terra, desde a primeira páscoa, já se dançava a nossa ciranda-de-praia. Nos dias de hoje, quem viajar pelo Brasil encontrará, de norte a sul, essa herança musical e coreográfica dos lusos: haja marujada, folia de reis, pastoris, serenatas e... o entrudo...
Ah, o entrudo! Esse milenar folguedo é o que mais me encanta. Mormente, na merencória folia dos seresteiros de pau e corda, os chamados blocos carnavalescos líricos.
Esses harmoniosos blocos líricos, bastiões do carnaval do Recife, evocam e preservam não só o modo português de festejar, seus folguedos e danças de celebração, mas guardam as profundas nuanças líricas, entranhadas na alma dessa Língua que também veio com as caravelas.

Revisitando, (como sempre faço, nesses dias que antecedem a folia), as composições de antigos blocos recifenses, reencontro essas canções dolentes, perpassadas de uma triste alegria, de uma saudade calcada em algo não-vivido, e que, além disso, primam por letras vazadas em bom vernáculo, de onde vem o puro olor, o cheiro bom, o aroma dessa última flor neolatina, em poesias pejadas do lirismo e da ternura da velha e boa língua-mátria.

Sobre isso, vale a pena citar Gilberto de Mello Kujawski, in "Fernando Pessoa, O Outro", quando afirma que "o dizer português é sempre vizinho da efusão lírica, pronto a vibrar em toda a escala de íntimas lamentações e exultações, de secretos cuidados e enternecimentos próprios às fundas confidências."

Todavia, não é só esse aspecto que deve ser revisitado nos blocos líricos.
Atentem bem para a semelhança desses brincantes recifenses com as danças pastoris, com os cortejos órficos das festas quase-pagãs que aconteciam nas afastadas vilas campesinas da Luzitânia, e até mesmo nos átrios engalanados, nos velhos paços da corte portuguesa, essas danças profanas que estão implícitas na citação de João de Barros, transcrita acima. O Recife é uma cidade profundamente ibérica. E nossas danças, músicas e folguedos guardam a semelhança daqueles costumes lusos.

Regressemos, agora, a esse longínquo pretérito, acompanhando as palavras de um dançar dionisíaco, que nos chegaram através do léxico arcaico de outro cronista-narrador: Fernão Lopes.
Deitem os vossos olhos sobre esses vetustos vocábulos que abaixo vos apresento; soprem-lhes os fonemas e deixem emergir do inconsciente os albores do efusivo lirismo dessa Língua Portuguesa, em essa prosódia, “alongada e ondulante; com ondulações que se perdem ao longe" e, decerto, encontrarão as origens avoengas dos cortejos musicais de nossos blocos carnavalíricos:

Viinha elRei em batees Dalmada pera Lixboa, e saiam-no a reçeber os cidadãaos e todollos dos mesteres com danças e trebelhos, segumdo estomçe husavom; e el saia dos batees, e metiasse na dança com elles, e assi hia ataa o paaço. Paraae mentes se foi boom sabor: jazia elRei em Lixboa huuma noite na cama, e non lhe viinha sono pera dormir e fez levamtar os moços e quamtos dormiam no paaço, e mandou chamar Joham Mateus, e Lourenço Pallos que trouvesem as trombas de prata, e fez açemder tochas, e meteosse pela villa em damça com os outros; as gentes que dormiam, sahiam aas janelas, veer que festa era aquella, ou porque se fazia; e quando virom daquella guisa elRei tomarom prazer de o ver assi ledo; e amdou elRei assi gram parte da noite, e tornousse ao paaço em damça; e pedio vinho e fruita, e lançouse a dormir. (Crónica de D. Pedro I, Barcelos - 1932, pp 42-43, apud FERNANDO PESSOA, O Outro, G. M. Kujawski, pp. 25,26)





Evoé, Flores do Capibaribe!
Carnaval chegou!






















Eurico
blogador e folião. **********************************************************************
Ilustração e algumas citações:
http://www.academia.brasil-europa.eu/Materiais-abe-73.htm

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Frevo de Saudade - Aldemar Paiva - (Coral do Bloco da Saudade)

Obs.:
Como é difícil encontrar a genuína música pernambucana na internet!
Carecemos pintar nossa aldeia, se quisermos ser universais, como aconselhava Leon Tolstoi.

Achei mais uma:
Último Regresso - Getúlio Cavalcanti - (Coral do Bloco da Saudade)



E mais essa:
Sabe lá o que é isso, de João Santiago.
(Hino dos Batutas de São José e dos casais enamorados)

sexta-feira, janeiro 17, 2014

VIRA-LATAS DO CARNAVAL - Marcelo D2 abre o carnaval do Recife


Ir à Lisboa, sem ouvir um bom fado? Visitar os hermanos em Buenos Aires, sem ouvir e ver dançar o velho tango argentino? Madri, sem as touradas? (essas eu até dispensaria...) Quem atravessaria o oceano pra ouvir o que já se escuta todo dia por aqui? Quem vai ver o que é que a Bahia tem, abrindo mão de ouvir os timbales, os afoxés e até o axé music. Claro que ninguém vai a Salvador buscando ouvir o techno-brega do norte, nem o carimbó, do Pará, ou o reggae do Maranhão! Para ouvir Pinduca iremos mesmo pro Norte, ora essa! 
Pois é... 
Mas, no Recife, uns burrocratas da prefeitura, querem mudar o curso das coisas e dizem que o frevo está ultrapassado, que os blocos líricos são saudosistas e outras asneiras do tipo. Ninguém aguenta mais isso! Senhores, o fado em Portugal vem de tempos imemoriais, ai mouraria... E é pensando em ouvir um fado, seja da Amália Rodrigues ou da Mariza, que o turista vai a Lisboa. Digam aos fadistas que eles estão ultrapassados... Ora bolas! Senhores gestores, na velha Olinda, o que lota as ruas, as hospedarias, os hotéis e as casas de aluguel é o frevo da Ceroulas, o "pampampampam - pam pam pam" das pequenas orquestras de rua, os eternos bonecos gigantes, que sempre estão lá, ladeira acima, ladeira abaixo, e jamais irão deixar de estar. 
Burros ou com escusos interesses, os gestores do carnaval recifense? Nada contra Marcelo D2, mas por que não Silvério Pessoa, Gerlane Lops, Almir Rouche e outros bons artistas da terra? Entra Prefeito e sai Prefeito e isso não muda! Até quando vamos reclamar desse descalabro! Queremos no Recife, a cultura do recifense, como há o samba no Rio, e o Boi Bumbá, no Amazonas. O que é que há, senhores gestores. Complexo de vira-latas? Apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia...