Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, abril 28, 2013

DON'ANA DO ALMIRANTE, ou, os pioneiros da Ilha do Leite

Viveiro de Peixes - Percy Lau

Quem conta a história de fontes orais, como é o meu caso, tem de admitir lapsos, imperfeições, permitidas a quem não tem formação acadêmica para analisar as entrevistas e as situações que as envolvem. Sendo este também o meu caso. Meu afã, no entanto, é registrar tudo o que me contam os meus parentes, todos acima dos oitenta anos, sobre os albores do século XX, principalmente, da Ilha do Leite, no Recife.


 Pois bem, nessa sexta, 26/04/2013, em conversa com minha Tia Enilda Rosa de Melo, octogenária, moradora do Pina e que também conviveu com Dona Ana, na Ilha do Leite, descobri pequenos pontos divergentes entre o seu relato e o do meu pai Elias Eurico de Melo, falecido há dois anos. Quase todos, na descrição dos cenários do primeiro parágrafo da postagem anterior. Claro que as duas versões merecem registro, sendo meu pai bem mais velho do que minha tia...
João Alexandrino de Melo
(pioneiro na Ilha do Leite)

 Segundo Tia Enilda,em suas lembranças da Ilha do Leite, os proprietários das casas de alvenaria não eram os que citei, mas, os Srs. Manoel Rosa, Antonio de Souza e o meu tio-bisavô João Alexandrino de Melo. Este último, dono da maior casa da Ilha, detentor de uma situação financeira melhor, em relação aos outros moradores, pois, à época, era o Chefe da Manutenção da Companhia de Águas e Esgotos, prédio que existe até hoje, no lugar chamado Cabanga, ali, ao pé da Ponte do Pina. Diz que o Tio João permaneceu na Ilha, apesar das cheias frequentes e da ameaça da Liga Social contra o Mocambo. Além das 3 casas de alvenaria, havia ainda a casa do Manuel Teodoro, pai da Dona Ana, e a casa em que morava o meu avô Luiz de Melo, litógrafo e desenhista, sobrinho e filho de criação do Tio João. Falou-me das querelas de Dona Gertrudes, Tudinha, nossa tia-bisavó, esposa do Tio João, que era fã do clube das Pás de Carvão (hoje Pás Douradas), nascido ali, nas cercanias. O caso é que a mulher do vizinho, Antonio de Souza, (uma galega dos olhos azuis,num lugar de maioria negra) era fã do Lenhadores da Boa Vista (hoje da Mustardinha), rival nº 1 do Clube das Pás. Pelo carnaval a ilha era visitada pelas duas agremiações e as vizinhas se esmeravam na festa de acolhida, a ver quem fazia mais bonito na ocasião. Tia Gertrudes, mais abastada, sempre vencia a disputa. Contou-me também que lá surgiram famosas troças e clubes, tais como o Cachorro do Homem do Miúdo, de 1910, entre outros. Bons tempos...

 Minha tia Enilda me corrige, defensora ainda hoje das ações do Agamenon Magalhães e da sua Liga Social contra o Mocambo, dizendo que o meu avô saiu da Ilha pro Pacheco, por conta própria e bem antes das demolições. E que, da mesma forma fez o Manuel Teodoro, que levou a filha Dona Ana pra um dos morros do bairro de Cavaleiro, o que bate com certas teses de que o Estado Novo facilitaria a favelização dos morros do entorno do Recife, desde que os mocambeiros fossem viver de “Macacos pra lá”.
Neste mapa de 1908, pode-se localizar o banco de areia
em que moravam os pioneiros. Fica entre a Ilha do Suassuna e
o Hospital D. Pedro II, no centro da imagem.

Tia Enilda descreve ainda o lugar, como tendo um só ligação com o centro do Recife através de uma ponte de madeira muito longa, que ligava a Ilha até a Rua dos Prazeres. Disse que de onde moravam viam apenas o extenso braço de maré, “a maré grande”, a leste, o imponente prédio do Hospital Pedro II e, ao sul, o Coque, antigo povoado de carvoeiros, que resiste até hoje.

 Sobre dona Ana, ela lembra que havia um grande pé de cajá, com muita sombra, com banco rústico, feito de um tronco. Diz que Manuel Teodoro ali se sentava e, vez por outra chamava pela filha:
“Calimita, ó Calimita, me traga um pote d'água”.

 Disse ainda que o Sr. Manoel Rosa construía viveiros de peixes e crustáceos, fazendo diques com a lama da maré baixa. E era da pescaria que muitos dos moradores sobreviviam. Contou-me que, havia um campo de futebol , que ficava no areial, por trás da Igrejinha da Saúde, distante uns 200 metros desta. Creio que esse campo ficava, mais ou menos, no lugar onde hoje está a Clínica ITORK, do afamado ortopedista Romeu Krause, irmão do ex-ministro Gustavo Krause.
E, por falar no ITORK, anos atrás, estando minha esposa em tratamento nessa clínica, lá conheci um senhor bem apessoado, negro elegante, longilíneo, carapinha branca. Chamava-se Nivaldo, 78 anos, e era o porteiro do ITORK. Todos os dias eu estacionava o carro e enquanto esperava a esposa em tratamento, ficava conversando com aquele senhor bom de prosa. Certo dia eu disse que meu pai havia morado por ali, há muitas décadas. E, qual não foi o meu espanto, quando ele disse que foi menino na Ilha. E foi logo
Armando
(jogador do Bahia da Ilha do Leite)
confirmando o nome dos meus parentes todos. Lembrou do Campo do Bahia, de um primo meu distante que jogava bem o futebol, o Américo, por alcunha Memé. Lembrou de meu pai, de vovô Luiz. E eu então perguntei de quem ele era filho. E ele disse: do Manoel Rosa. Confirmando esse ponto da história que me passaram os meus parentes. Falou-me ainda, que do outro lado morava um carteiro, ali, dizia com os beiços, ali onde está aquele grande hospital. Ali era a casa do carteiro...
Infelizmente, Seu Nivaldo, já octogenário, filho caçula do Manoel Rosa, faleceu há pouco mais de um ano.

 Bem, são essas as correções e as novas informações que queria registrar da breve história de Dona Ana, que se mistura com a do meu povo, herdeiro que sou da Mucambópolis (rsrs), nome dado pela pesquisadora Zélia Gominho, ao Recife invisível, dos habitantes das margens dos Rios Capibaribe, Jiquiá, Tejipió e Jordão, expulsos pela política higienista do Estado Novo, e que foram fundar os grandes aglomerados dos morros da zona oeste da cidade.


P. S.:
Meu pai, tricolor de quatro costados, dizia-me que, ali perto, na Boa Vista, foi fundado o Santa Cruz, (quem sabe uma dissidência do Bahia, da ilha do Leite?). O Santinha, clube inicialmente alvinegro, é o xodó de boa parte da Família Melo. Eu, respeitosamente, sou uma ovelha negra, ou rubro-negra, já que sou torcedor do glorioso clube de outra Ilha, a do Retiro, ali pertinho. Clube mais antigo, pois é de 1905, e cujo fundador trouxe o esporte bretão para essa terra maurícia, para, bem depois, ensinar aos outros. O Náutico só aderiu ao futebol em 1909. O Santa só surgiria em 1914. Perdoem-me, os Melo, da Ilha do Leite, mas sou do Sport Club do Recife!

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