Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, outubro 28, 2012

ATO DE CONTRIÇÃO (vincos em Vico)

ESPINHOS
E. B. Brito




























1
(Vodu)

De há muito que vem sendo entretecida
essa urdidura, pespontada em vincos sensíveis,
lembranças,  gritos remotos, palavras-farpas.

Sim, existem palavras-farpas,
feito alfinetes acutíssimos,
(injunções, diriam os médicos da alma)
que marcam dentro, desde a mais tenra infância;


2
(Sulcos)

De há muito que entrevejo essas ranhuras,
dolorosas dobraduras, na tênue
película em que se (a)gravam
os danos d'alma.

Existir é como a terra sulcada,
a eira,
que  (con)sente,
os rasgos do arado,
resolvendo em adubo, os detritos,
curando a aridez do solo.
Dessa terra lavrada desabrocham grãos.
Fruteiras também brotam do monturo.


3
(Contrição)

Claro que já pensei em amarrar rojões nos rabos dos gatos.
em atirar pedras nos santos,
por vezes, pensei até em morrer de tanta tristeza, sem saber por quê.

Não morri.
Mas, trancado em meu quarto, tinha surtos poéticos.

(Naqueles dias aziagos, lembro de que havia uma capela,
onde se ia recitar um incompreensível Ato de Contrição.
Percebia-se alguma poesia no olhar das catequistas.)

Não morri, tenho quase certeza disso.
E estou quase sempre mentalmente sadio.
Mas quando em surto,
cometo poemas inúteis e sem sentido, como este,
que mais parece uma afiada faca japonesa.





Eurico,
(vincos subliminares e metafóricos,
remexidos por leituras em Giambattista Vico)


Fonte da imagem:
AbARCA

Releia, ouvindo Tárrega: Recuerdos de Alhambra

segunda-feira, outubro 22, 2012

DUDA

A MENINA
E. B. Brito


Paira a Duda, assim, pingente,
sobre os raios de um biciclo,
mirando-me, ambiguamente,
nos olhos, de modo oblíquo.
***


Duda, niña semiótica,
transita por entre os signos.
Levita, longe da lógica;
leva o abstrato consigo.
***
Dona de mim, traça órbitas
com o dúbio ciclo, nonsense.
Lança-me os dados da sorte,
gira no globo da morte,
faz piruetas circenses


***


Duda, voz dissimulada,
questiona-me, inocente.
Vacilante, Duda indaga,
num sussurro reticente
:
há um mistério nas coisas
porque em mim habita o mistério
ou
há um mistério em mim
porque o mistério habita as coisas?


***
Olho os céus,
fico silente,
minha mirada se turva,
mergulho no inconsciente
e me abraço à imensa Duda...




***




******************************** ~
No esboço desse poema, guardado desde
22/12/1997, havia também um dedicatória
ao místico italiano Pietro Ubaldi.


Fonte da imagem:
AbARCA



sábado, outubro 20, 2012

O ARQUIVISTA





















O arquivista cofia
os seus extensos bigodes
na incerteza se pode,
ou na certeza que não pode
forjar aquilo que acode
ao seu instinto de ordem.
E sente na alma, fria,
a estranha melancolia
do anseio da simetria
que faz do caos, harmonia.

O arquivista avalia
e seus bigodes cofia:
será a ordem doentia?
E a métrica, antipoesia?

Bilac, em ordem, escandia
e, pasmem, estrelas ouvia,
naquela monotonia
ritmada, mas vazia,
mais parnaso que poesia.

Também verseja, o arquivista,
por entre as caixas em ordem?
Ouve, no acervo, as estrelas?
Perdeu o senso entre os lotes?

Eis que o arquivista debalde
procura a normalidade
que em seu cérebro havia;
como o herói de Cervantes,
surtado, avista gigantes
entre as estantes esguias...
(Que bela patologia!)



Fonte da imagem:
http://storage.mais.uol.com.br/357613.jpg?ver=1

Nota:
Dia Nacional do Arquivista - 20 de Outubro
(uns ainda se orgulham da função)




Eurico
(clic de Juliana das Oliveiras)
 

terça-feira, outubro 16, 2012

TIJOLINHO (em memória de meu pai)




















I
Desci a ponte apressado,
perdi o bonde das cinco.
Volto pávido pra casa.
Mas não perdi a esperança.

II
Sei que os gatunos já espreitam,
na Estreita do Rosário,
Os bêbados
Os operários
que jogam com palitinhos.
Aqui se dorme cedinho.

III
Conheci um motorneiro
cujo nome, Tijolinho,
sempre me cai na cabeça.
Meu pai dizia: não desça,
antes de Tejipió.
Primeira vez, eu, no bonde,
andei só.

IV
O bonde aberto do lado.
Eu fora, dependurado,
com o guarda-chuva na mão.
Eu, de volta.
Eu, cansado.
Eu, eus, múltiplo, multiplicado.
Mil rostos,
mil e um pecados.

V
Eu, do Recife,
eu, do umbigo do mundo.
Eu, tão ambíguo, no mundo.
Vrrrummm! no bonde, um giramundos!

VI
Fui consultar u'a vidente.
Queria ver meu passado.
Meus trilhos. A ubiquidade;
Eu, tríbio.
Eu, sem idade.

VII
Num bonde andei.
Mas brincava sobre uma placa flutuante.
Um bonde é, antes, brincante;

f(l)ui, passageiro,
Eu passei...



Viagem poética, criada a partir de uma viagem real,
que fez o meu pai, Elias Eurico de Melo.
Meu velho, 86 aninhos, me contava seus causos d'infância,
naqueles dias frios do inverno de 2010 em que, juntos, cuidávamos
dos nossos corpos (e almas), alquebrados, mas serenos.
Eu convalescia de um câncer, que superei,
ele, de um Parkinson, que não o pouparia.


Fonte da Imagem:

Bonde de Tejipió
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1112501


Notas do blogueiro:

1- A reedição dessa postagem é em memória
do Sr.Elias Eurico de Melo  (31/08/1924 - 17/10/2011),
meu querido paizinho, que, há um ano, nos deixou saudosos.

2- Poema da série Evocações de um Recife Antigo (ago/2010).



Ao fundo, Taiguara - O Velho e o Novo:


Deixa o velho em paz
Com as suas histórias de um tempo bom
Quanto bem lhe faz
Murmurar memórias num mesmo tom


A sua cantiga, revive a vida
Que já se esvai
Uma velha amiga, outra velha intriga
E um dia a mais


Vão nascendo as rugas
Morrendo as fugas a as ilusões
Tateando as pregas
Se deixa entregue às recordações


Em seu dorso farto
Carrega o fardo de caracol
Mas espera atento
Que o céu cinzento lhe traga o sol


Ele sabe o mundo
O saber profundo de quem se vai
O que não faria
Pudesse um dia voltar atrás


Range o velho barco
Lamento amargo do que não fez
E o futuro espelha
Esse mesmo velho que são vocês



NADIR (ou zoom n'areia)

 
Conchinhas d'Areia
Emanuel B. Brito


 
e esse formigamento nos olhos
esses pequeníssimos e inumeráveis ciscos
e esses mil diminutos pontos graníticos,
e esse nadir: o avesso de milhares de miúdas estrelas,
ora esse quartzo que lateja,
ora esses prismas em mica,
e esses quase- animálculos, minúsculos
e esses esporos, áporos, inanimados,
e esses poros na pele de tudo
e essas miríades de formas no caminho
e esses fragmentos rútilos à magma
e essas retinas afadigadas
e essa sensação quase imperceptível
de rocha desagregada em sal, no solo,
nos solados ........................................



Fonte da imagem:

sexta-feira, outubro 12, 2012

O BEIJA-FLOR

FLORES
Emanuel B. Brito


I


O Beija-flor
beija a flor
inteira e não-conotativa.
Beija a realidade, flor sem artifícios.
Beija, o Beija-flor,
o cerne mesmo da Flor.


II

( ...era o meu intento envasar o aroma
dessa despetalada Flor, numa redoma).


III

A Flor e esse cativo Beija-flor
(fabrico-os dessa matéria plástica e furta-cor)
A flor, a derradeira e inculta.

A Flor.
(
...e em suas pét’las
errático,
um beija-flor,
flâneur vibrátil,
floreteia,

oral e erétil,
à flor,
à ineffabile e bela flor
do Lácio
)

 

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Fonte da imagem:
 
AbARCA

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terça-feira, outubro 09, 2012

CANÇÃO DE TUDO


 
Sinfonia dos Pássaros
Emanuel B. Brito



Há uma melodia em tudo o que se move.
Uma música browniana,
eu diria,

que há mesmo um timbre subreptício
no fluxo do ser das coisas, ab initio.
Uma música no carreiro das formigas e das galáxias.
Uma música de tudo...

Desde o movimento imenso, o belo Sete-estrêlo ,
até o humilde arroio, em seu áspero leito.

Esse silêncio.

a débil vibração das asas de uma vespa.
e uma oitava acima, o luminoso som da aurora boreal,
Os entretons da voz sonora
das carambolas
que ora penduleiam
entre as galhas
que farfalham

que espalham uma melodia

Os sons.
A impressão dos sons...
esse ranger de dentes
um interno trote,
um galope, o coração..

A voz presa na glote,
o fagote,
a úvula, a uva e o euritmo da chuva.

O cravo temperado
o som das mangas verdes 
em diáfanos vestidos (não vedes?)
Gravetos percutidos pelos pés.
Mil setas que sibilam.
E o pipilar das aves, dentro e fora.

A música do agora 
brilhante e bela música
de uma eterna estação
Ecoa consoante
desde antes,
muito antes,
na música desse instante.


Nota do blogueiro:
(canção a ser musicada ao violão)



 

sexta-feira, outubro 05, 2012

PAVÃO SOBRE O TELHADO

PAISAGEM COM PAVÃO - E. B. Brito




















A gente cresce por fora,
Vivendo a vida recente.
Dentro, há muito mais d’outrora
Do que aqui se pressente.

A memória jorra agora
É irrupção no presente
E esparge coisas miúdas,
Antigas coisas e gentes
:
Ora é água de cacimba
salto solto em rio perene
e o baixio todo alagado.
Por vezes, estrada e sol
Léguas, pra ir no barreiro,
Pra dar de beber pro gado.

A memória traz visões,
nos sobressaltos da noite.
Cabriolas e pavões,
em cima de algum telhado,

A memória é dentro e fora
resíduo do impermanente
um imenso mundo que aflora
paisagem dentro da gente...


 
Fonte da img:
AbARCA

quinta-feira, outubro 04, 2012

ESTUDO Nº 2 (rabiscos em chávena chinesa)


     
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 *...sem a teia, *
uma aranha não urde
* * a realidade. A teia * *
* * é o modo com que funde * *
a perplexidade do que é labirinto na vida,
 * * * * ao nexo do entorno, ao chão * * *
  * * * * * * *  da (sua) finalidade... * * * * * *
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 * * * Chã * * *
de artifícios, de fios
 * entrelaçados e frágeis; *
terreno instável, é verdade.
  * * * * * * Mas, * * * * * *
* * *um apodítico chão. * * *
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 * *
* * *

* * E, * *
 * * * * como tal, * * * *
 faz-se uma certeza possível
 * ao oscilar sus/tentáculos, * 
nos quais a aranha acon/tece,
* * * * vacila, tece, vacila, * * * *
 * * * * * urdindo uma trama * * * * *
entre o acaso, a sina e a necessidade...



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Ao fundo, uma música tibetana:

 

TRABALHO - E. B. Brito
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Fonte da imagem:

quarta-feira, outubro 03, 2012

ÁPTERO (oitava ao rés do chão)



Queda sobre Espinhos - E. B. Brito


























Quebradas, as asas que não temos,
dóem muito mais, quando não vemos
onde é que dói a dor, ou não sabemos...


E que dizer do homem, ser terreno,
cria da terra, errante, o mais pequeno,
a querer avoar, bicho sem asa,
e, afinal, rastejar, dentro de casa,

tateando, a perseguir, em si,
seu proprium, em chã bem rasa?

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Eurico,

(num improviso para a amiga Mai,
ou seja, uma singela modinha, inspirada em Dante Alighieri,
na qual também ecoa uma secular oitava camoneana).
15/02/09

P.S.:

Não resisti à tentação e lhes trouxe a tal oitava de Camões,
que dedico ao áptero que existe dentro de cada um de nós:

"Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"
(Luís de Camões)


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Fonte da img.:
AbARCA

terça-feira, outubro 02, 2012

ÁPTERO (ave tardia)

APTERIX - ave imaginária - E. B. Brito

 
 
E eu, aqui, in/significante,
fresta do acaso, entre voláteis vazadouros,
agarro-me ao nexo do estar.

Se é alado o céu e a ventania vai aonde quer,
por que pousar?

Tudo o que é vida passa, tudo é lábil
e a flor bela é frágil e breve.
Viver é instante e espanto,
imprevisível notação de uma ária dodecafônica.
Chuva fugaz, lugar nenhum.
Todas as instâncias se acotovelam em janelas irreais:

Há lócus de mim, não eu.
Não sou,

mas evidências instáveis resistem sem mim.
Creio no solo sob os pés.
Ando movediço...
Ave tardia.
Áptera.
E só.



Eurico
(poema sem data, sem hora, sem lugar...)

Fonte da imagem:
AbARCA

 


segunda-feira, outubro 01, 2012

UMA ROSA RASA

oqueimPORTA - E. B.Brito


Naqueles dias lia Foucault, As Palavras e as Coisas, e, depois de animado debate com Lana Reis,
estagiária do Memorial da Justiça, sobre a estética modernista com "a dura poesia concreta de suas esquinas" em contraponto com certo exagero neo-barroco e outras questões interessantes, a danadinha desafiou-me a fazer um poema sobre a porta da nossa sala de trabalho. Fiz.  Creio que dá pra publicar aqui:



UMA ROSA RASA



À porta, o simples:
ergue-se o ser plano e angular,
mera tábula.

À porta, o singular:
planta de folha única,
monolito em eucatex, uma rosa rasa.

À porta, a estética:
fruta de sua função.
bela sem ter a necessidade de pétala.

À porta, aportam
a forma e o fundo:
silogismo binário, o geométrico e profundo
ser que abre e fecha
a prosa do mundo


Eurico
14/06/2001




Poema dedicado a Lana Helane Reis Raposo,
uma das pessoas mais brilhantes que já conheci,
e de quem recebi lições profundas e belas
que guardo com o carinho e o cuidado de um eterno aprendiz.



Fonte da ilustração:
Mais uma obra prima de Emanuel B. Brito.