Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, dezembro 13, 2011

DO ESCRITOR (Deleuze, em A de Animal)

























"(...) O que me fascina no animal? Meu ódio por certos animais é nutrido por meu fascínio por muitos animais. Se tento me dizer, vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa é que todo animal tem um mundo. É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos. Um mundo animal, às vezes, é extraordinariamente restrito e é isso que emociona. Os animais reagem a muito pouca coisa. Há toda espécie de coisas...

Essa história, esse primeiro traço do animal é a existência de mundos animais específicos, particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a redução, o caráter reduzido desses mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, há pouco, de animais como o carrapato. O carrapato responde ou reage a três coisas, três excitantes, um só ponto, em uma natureza imensa, três excitantes, um ponto, é só. Ele tende para a extremidade de um galho de árvore, atraído pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbívoro, um bicho passe sob o galho, e então ele se deixa cair, aí é uma espécie de excitante olfativo. O carrapato sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este é o segundo excitante, luz, e depois odor, e então, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a região com menos pêlos, um excitante tátil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele não dá a mínima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona três coisas.

CP: É este seu sonho de vida? É isso que lhe interessa nos animais?

GD: É isso que faz um mundo.

CP: Daí sua relação animal-escrita. O escritor, para você, é, também, alguém que tem um mundo?

GD: Não sei, porque há outros aspectos, não basta ter um mundo para ser um animal. O que me fascina completamente são as questões de território e acho que Félix e eu criamos um conceito que se pode dizer que é filosófico, com a idéia de território. Os animais de território, há animais sem território, mas os animais de território são prodigiosos, porque constituir um território, para mim, é quase o nascimento da arte. Quando vemos como um animal marca seu território, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histórias de glândulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu território. O que intervém na marcação é, também, uma série de posturas, por exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os macacos, por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles manifestam na fronteira do território... Cor, canto, postura, são as três determinações da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais são, às vezes, verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. É a arte em estado puro. E, então, eu me digo, quando eles saem de seu território ou quando voltam para ele, seu comportamento... O território é o domínio do ter. É curioso que seja no ter, isto é, minhas propriedades, minhas propriedades à maneira de Beckett ou de Michaux. O território são as propriedades do animal, e sair do território é se aventurar. Há bichos que reconhecem seu cônjuge, o reconhecem no território, mas não fora dele.

CP: Quais?

GD: É uma maravilha. Não sei mais que pássaro, tem de acreditar em mim. E então, com Félix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosófico, porque... misturamos um pouco de tudo no abecedário. Digo para mim, criticam os filósofos por criarem palavras bárbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razões, faço questão de refletir sobre essa noção de território. E o território só vale em relação a um movimento através do qual se sai dele. É preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente bárbara. Então, Félix e eu construímos um conceito de que gosto muito, o de desterritorialização. Sobre isso nos dizem: é uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso? Aqui, um conceito filosófico só pode ser designado por uma palavra que ainda não existe. Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras línguas. Por exemplo, depois percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio mal, você corrige, outlandish é, exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra. Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia é surpreendente. Precisamos, às vezes, inventar uma palavra bárbara para dar conta de uma noção com pretensão nova. A noção com pretensão nova é que não há território sem um vetor de saída do território e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais. É isso que me fascina, todo o domínio dos signos. Os animais emitem signos, não param de emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E eles produzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso é um signo de lobo? É um lobo ou outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal com o animal. É formidável.

CP: É essa emissão de signos, essa recepção de signos que aproxima o animal da escrita e do escritor?

GD: É. Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente, à espreita.

CP: Como o escritor?

GD: O escritor está à espreita, o filósofo está à espreita. É evidente que estamos à espreita. O animal é... observe as orelhas de um animal, ele não faz nada sem estar à espreita, nunca está tranqüilo.

Ele come, deve vigiar se não há alguém atrás dele, se acontece algo atrás dele, a seu lado. É terrível essa existência à espreita. Você faz a aproximação entre o escritor e o animal.

CP: Você a fez antes de mim.

GD: É verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os leitores, ou seja, "para uso de", "dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos leitores". Mas o escritor também escreve pelos não-leitores, ou seja, "no lugar de" e não "para uso de". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu páginas que todo mundo conhece. "Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas". Faulkner escreve pelos idiotas. Ou seja, não para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas no lugar dos analfabetos, dos idiotas. "Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos". O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? "Escrevo no lugar dos analfabetos, dos idiotas, dos bichos". É isso que se faz, literalmente, quando se escreve. Quando se escreve, não se trata de história privada. São realmente uns imbecis. É a abominação, a mediocridade literária de todos as épocas, mas, em particular, atualmente, que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua historinha privada, sua avó que morreu de câncer, sua história de amor, e então se faz um romance. É uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever não é assunto privado de alguém. É se lançar, realmente, em uma história universal e seja o romance ou a filosofia, e o que isso quer dizer...

CP: É escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". É o que disse em Mil platôs, sobre Chandos e Hofmannsthal: "O escritor é um bruxo, pois vive o animal como a única população frente à qual é responsável".

GD: É isso. É por uma razão simples, acredito que seja bem simples. Não é uma declaração literária a que você leu de Hofmannsthal. É outra coisa. Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até um certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.

CP: Mas de jeito algum o latido?

GD: Não, o latido não. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka é A metamorfose, o gerente que grita: "Ouviram, parece um animal". Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka escreveu pelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. Não são os homens que sabem morrer, são os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como bichos. Aí voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vários gatos que se sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente também viu, como um bicho procura um canto para morrer. Há um território para a morte também, há uma procura do território da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o escritor é alguém que força a linguagem até um limite, limite que separa a linguagem da animalidade, do grito, do canto, deve-se então dizer que o escritor é responsável pelos animais que morrem, e ser responsável pelos animais que morrem, responder por eles... escrever não para eles, não vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no lugar dos animais que morrem é levar a linguagem a esse limite. Não há literatura que não leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite. Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do não-pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que não se fique separado dela. Há uma inumanidade própria ao corpo humano, e ao espírito humano, há relações animais com o animal. Seria bom se terminássemos com o A...(...)"



Fonte do texto:
O ESTRANGEIRO: Abecedário de Deleuze - compilação de entrevistas em vídeo.


Imagem:
Aranha Saltadora

7 comentários:

Dauri Batisti disse...

O G. Deleuze diz com conceitos as ondas nas quais surfamos. Vivemos e tangenciamos estas vidas e estes mundos pela poesia, pelo delírio, pela fabulação; ele, lucidamente, traduz nossos movimentos em conceitos. Talvez por isso nos vemos nos seus escritos, eles são nossos escritos também.

Um abraço.

cirandeira disse...

Essa entrevista do Deleuze está muito boa, Eurico. Há pontos de vista que nos demandam uma profunda reflexão, e para isso há
que se ler com várias pausas...!
Obrigada pela partilha.

grande abraço

Lícia Dalcin disse...

Magnífico como a certeza de que o animal não experimenta por crença; toma por verdade. Estou tentada a ler a dupla com seriedade científica, mas sou medonhamente emaranhada em Freud. Não, o "mas" não há de ser tão absoluto quanto parece. O "medonhamente" sim.


Bj


Lícia

Rejane Martins disse...

Sobre sintaxe da linguagem, parto do simples, com muito respeito, com tato com a palavra, com o sentido.

Paula Barros disse...

Achei confuso. Me pareceu que vai e volta e vai e volta.....para dizer algo. Alguém talvez simplifique para dizer a mesma coisa. Ou seja minhas limitações.

Mas gostei muito desta parte:

É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos.


abraço

Unknown disse...

Excelente. Eurico!

Deleuze é tão simples que é místico. Tenho lido muito dos seus escritos e idéias.

Quero, preciso ser um animal amorfo, na ponta do galho de uma árvore....à espera!

Você é GRANDE, poeta!

Beijos

Mirze

Anônimo disse...

Desejo felicidade,
prosperidade, saúde,
realizações, paz e tudo
de melhor para você e toda
a sua família nestas festas.

Feliz Natal! Feliz Ano Novo!

Bjs.