Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quarta-feira, novembro 30, 2011

PROF. BARKOKEBAS, UM ANTÍSTITE


Ginásio Pernambucano, um monumento às margens do Capibaribe.



















O maestro Miguel Barkokebas era um mestre exigente, como de resto eram todos os do Ginásio Pernambucano. Confesso que não estava na lista dos que eu mais me lembrava, dentre tantos professores "catedráticos" daquele centro de excelência em educação. As estrelas eram Hilton Sette, José Brasileiro Vilanova, Cláudio Estelita, entre outros. Mas, dia desses, pesquisando sobre antigas agremiações carnavalescas do Recife, encontrei uma paixão que nos aproxima. O nosso querido mestre, como eu, também era um aficcionado dos blocos líricos. Compositor de hinos sacros para a Igreja do Rosário, no Bairro da Torre, ele não resistiu ao lirismo do Bloco Apois Fum, e dedicou-lhe a marcha "Esse Bloco é Meu". (vide João Montarroyos,  Bloco Apois Fum: O lirismo e a ousadia de Momo).

Mas, o que tem a ver essa reflexão com poesia, que é o motivo principal deste blogue?
Tem tudo. Tudo a ver com a poesia e com as palavras.

Durante as animadas aulas de canto orfeonico, o prof. Barkokebas nos ensinava, como era de praxe naqueles anos de chumbo, todos os hinos pátrios, com aqueles versos solenes, quase sempre com sujeito posposto e recheados de palavras arcaicas. É claro que entremeava aos hinos cívicos, as suas modinhas e canções, sendo a que mais gostávamos, o dobrado Pindorama , com uma sequência em tons graves demais para nossas vozinhas infantis:

"Sou Tabajara nessa terra de Tupã
que tem arara, papagaio, maracanã
Eu tenho o céu, tenho os pássaros do céu
que mos deu foi Tupã,  foi Tupã, foi Tupã..."


Sem esquecer da sua obra prima, o belíssimo hino dedicado ao Ginásio Pernambucano. Era na letra desse hino que estava, muito bem encaixada, apesar de proparoxítona e no fim de um fraseado musical, cheio de fusas e semifusas, a palavra antístite. Cantávamos de cor, o Hino do GP, num coral de fedelhos na faixa dos 12 ou 13 anos. Alguns se entreolhavam, com algum pasmo, ao solfejarmos aquela frase de difícil dicção, que dizia, mutatis mutandis:

"Ginásio Pernambucano (...)
por ti passaram Presidentes e Antístites"


Antístite: essa palavrinha misteriosa me acompanha até hoje, perfeitamente acoplada à sua frase musical. O mestre, que nos fazia repetir a melodia até a exaustão, também está em mim e na minha poesia. Ao engastar aquela proparoxítona, incomum e arcaica, no hino do colégio, ele sutilmente me ensinava a compor. Ritmo, sílabas tonicas, síncopes frasais, melodia... tudo estava inserido nessa frase musical que hoje emerge do fundo do meu subconsciente, ou, como diz o Caetano, do fundo dessa "força estranha que me leva a cantar" e que me fez compositor e letrista, desde os 16 anos, e, de lambuja, também me despertou a Poesia. Eis a força de um educador!

Salve o mestre Miguel Barkokebas, um verdadeiro antístite! Grato pelos duros carões que nos passava, quando errávamos a pronúncia daquela célebre frase do Hino do Ginásio Pernambucano. Serei teu eterno aprendiz!
Evoé, Mestre!























Miguel Barkokebas, pianista, mestre de música do Ginásio Pernambucano, Colégio Salesiano e outros educandários do Recife.
Nasceu no Rio de Janeiro, em 22 de maio de 1902, sendo filho de turcos, Ali e Rosa Barkokebas.
Radicado desde a juventude no Recife, fez toda sua vida no magistério nesta cidade, onde deixou uma família de doze filhos, 54 netos e três bisnetos, quando seu falecimento, em 14 de agosto de 1978, no bairro da Torre, onde sempre morou.
Compôs para canto coral e, muito especialmente, para um repertório de música religiosa, que ele todos os domingos apresentava na missa das 9 horas na igreja de Nossa Senhora do Rosário da Torre.
É autor de verdadeiras jóias da música sacra - Achei Jesus; Bendito seja o santuário; É todo meu -, mas não resistiu ao apelo do Bloco Apôis Fum e, sob o pseudônimo de João sem nome, compôs Esse bloco é meu, além  de outras composições no mesmo gênero.


Fonte : História Social dos Blocos Carnavalescos do Recife, Leonardo Dantas Silva, 1998.


Fonte da imagem:
http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Miguel+Barkokebas<r=m&id_perso=1930

Imagem do Ginásio Pernambucano (atual):
http://sp5.fotolog.com/photo/37/3/50/recife/1207975454_f.jpg


Etimologia:
Antístite: do latim Antistes, "chefe, o principal"; ou, ainda, do latim Antius, "o que está na vanguarda.
OBS.: no trecho do Hino do Ginásio, acima citado, significa  chefe eclesiástico, pontífice.
Fonte: Revista eletronica PUCRS

segunda-feira, novembro 28, 2011

AVES HERMÉTICAS (da leitura dos motes e das coisas)



Essas palavras apenas vozeiam,
distraídos bandos sintáticos,
por pura obediência
às leis do ritmo e da contigüidade.
Nada pretendem dizer além do vôo.
Não fazem metáfora, nem mistério.
Vozeiam, simplesmente.

Mas eu as persigo
como um gavião faminto
persegue a sua presa
para renovar a (minha) vida...

Inútil,
esse (meu) desesperado afã de compreensão:
Herméticos, (as coisas, os motes),
milhanos, num vórtice,
devoram-me...



Fonte da imagem:
Aves atacam predador


Sounds of Nature - Forest Piano:

domingo, novembro 27, 2011

Mais um excerto do Livro do Desassossego



Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.
Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?



s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

- 85.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
índice •

Fonte do texto:
http://arquivopessoa.net/textos/2206
Nota do blogueiro: o padrão ortográfico é do sítio original.

E oiçam mais um fado da Mariza: Vielas da Alfama.

sábado, novembro 26, 2011

LIVRO DO DESASSOSSEGO (excerto)



Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu o não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto, porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que o releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscamo-lo por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos.
O que me dói é que o melhor é mau, e que outro, se o houvesse, e que eu sonho, o haveria feito melhor. Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só à regra do que deveria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser. Somos ocos não só por dentro, senão também por fora, párias da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ela me nascia, mais rápida que os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem ter sido...

Bernardo Soares


s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
- 321.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Fonte do texto:
http://arquivopessoa.net/textos/1689

Ao fundo ouve-se algo como "O Deserto" - Mariza (in: Fado Curvo)

domingo, novembro 13, 2011

d'AS COUSAS (e d'Os Motes)




se há poesia
em buscar vozes ao dicionário?
se há beleza em formar cores na paleta?
se na pedra já habita a forma inata?
Quem sabe...
Mas todas essas cousas
mesmo as que em desuso emergem
as mais obsoletas
querem um lugar ao sol
e mostram suas faces ávidas
essas cousas assim despercebidas
esse vaso vazio
essa cousa pressentida
essa idéia de vida
o poeta escava fundo e também lavra
essa palavra...




Eurico
Poema dedicado a alguém que me questionou sobre certas palavras
arcaicas em meus poemas.
Não são palavras, são cousas vivas, evidentes e presentes. Antigo é o sentido que se lhes dava.  rsrsrs