Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quarta-feira, agosto 31, 2011

POEMA QUASE NU



Caminhar nada mais é
do que um pé alçado
e outro no chão.
O movimento é meramente o ritmo
de alternar os pés.
Andar, portanto, não carece de metáfora
nem de alusão.



Assim é este poema
Umas parcas linhas escritas
e outras não.
Alternam-se, ora as entrelinhas,
ora os signos.
Nada no poema move-se
para além do caminho que persigo.

Passos perdidos...

Eis a ilusão:

O adjetivo.






Fonte da imagem:
Passos

terça-feira, agosto 30, 2011

POEMA QUASE NOIR




















Não levarás mistério às coisas que fenecem.
Um por do sol é apenas o sol a se por.

Se houver um branco níveo nos cabelos,
abdica do espelho
ou da lembrança.

Faz quase escuro...
e a hera já entretece todo o muro.







Fonte da imagem:
Recanto de jardim

Abanca-te, a ouvir Sogno, por Andrea Bocceli:

sábado, agosto 20, 2011

AUTO-RETRAÇO

(ou fábrica de espelhos)





















É pra nos vermos, sim, é pra nos vermos
Que fabricamos
essas poças d'água contra o sol.
De vidro, todos os poemas
teoremas
apotegmas
todos os di-lemas.
Di-frações
Lentes espelhadas

(Luz, quero luz...)

Todas as pedrinhas lançadas no espelho d’água
E a flor das ondas reverberando...
Tudo isso, e ainda querer dos filhos
que sonhem como um dia sonhamos.
E que enxerguem o mesmo mundo que vi(ve)mos

Ajustar o foco,
Olhar nos próprios olhos
E revelar que não te amo.
Em verdade, eu me amo em ti.


Todos os postulados
Todas as teses
Os aforismos
Os vaticínios.
Sim, esses poemas,
vitrais,
bulbos de vidro soprados de dentro da alma,
São a maneira de re-ver
nesse afluente heraclitiano
que leva, sempiternamente,
Essa imagem, essa imago...
Esse auto-retraço.
Esse Eu.


Eurico
fev/2008
(A imagem é o Narciso de Caravaggio.)

domingo, agosto 14, 2011

ÔIAZUL (poema-escorço)


(um experimento dziga-vertoviano)

 
























Uma baiteira passa,
Vagarosamente,
rente às palafitas
.

Zoom:
(Patas longas, desajeitados,
os caranguejos engalfinham-se,
disputando um exíguo espaço;
A água suja desce pelas
tramas do cesto e lhe escorre
pelas sobrancelhas..., nariz..., boca...
Em slow motion, pela blusa,
onde balança belo o busto volumoso,
escorre a água e o suor...)


Zoom:
(Mão calosa, unhas cheias de lama,
aperta a franzina mão, sem pena, da menina...)


Fogem da nossa vista
como xiés assustados
.

Zoom:
(Pernas finas, pequenina,
a menina franzina anda,
salta, corre, cai-não-cai,
pelas tramas do texto,
tentando seguir as passadas da mãe...)


Uma viela as encobre.
Entocam-se.


Olhos curiosos,
Dos mocambos,
espreitam pelas frestas das paredes de tábua e zinco.





(poema-escorço, pinçado das muitas experiências hipertextuais do  Bóstrix n'água,
cujo título tomei emprestado ao capítulo  Ôiazul)



Fonte da imagem:
Marisqueira

sábado, agosto 13, 2011

LULA CÔRTES (direto dos anos 70)



Perdoem-me, os de ouvidos mais sensíveis,
mas um dia eu tive 16 anos,
e eram os anos 70.
E eram os anos 70...


Essa não é uma apenas homenagem póstuma ao xará Lula Côrtes.
Essa homenagem faço a todos os poetas, vivos ou mortos, dessa cidade das pedras que seguram o mar.


E tem mais do Lula, no Programa Toda Música:
(bem, ele diz uns palavrões, e tal, e umas bobeiras sobre baseados, quem tiver ouvidos de ouvir, filtre o que quiser e ouça o poeta):


Uma dica: usem a tela inteira. O Lula era uma poeta integral. Inteiro.

sexta-feira, agosto 12, 2011

BÓSTRIX N'ÁGUA ( capítulo VIII)





















ILHA-SEM-DEUS



Aquecer a frágil’alma

Ao calor desses destroços
Esses retraços que ardem
Em um ser baldio e sem crença


Esfregar mãos engelhadas
Ao fogo desse monturo
Prender a morte num engulho
Sem desistir da existência


Buscar sentido no caos
E fé na lenta agonia:
Esses barracos imundos.
Essas entranhas vazias.


Trapos, lama, palafitas
Sem Deus na ilha esquecida
E a vida?


A vida é também retraço
No pó das desconstruções.
Essa inútil empreitada.
Um traço desesperado
Que nós riscamos no Nada...






Jorge Dantas 
poema publicado no capítulo VIII, do Bóstrix.




Nota do zineblogueiro:

Estarei por uns dias às voltas com meu Bóstrix n'água,
e convido os leitores para uma visita às obras de montagem,
ora retomadas, a todo vapor, mormente com a ajuda
dos engenhosos William Burroughs (nos cut-ups)
e  Alfred Döblin ( na técnica de montagem),
sem esquecer do meu mestre-de-obras, Julio Cortázar, a quem agradeço
pela idéia de urdir um guia dos nexos, se nexo há no que fabrico. rsrsrs

segunda-feira, agosto 08, 2011

PELEJA


























A Carlos Pena Filho



Acender uma fogueira
Sobre os destroços da fúria:
Dizer o dom mais terrível
No tom da mais vil ternura.
Por monossílabos vastos
Cantar o avêsso, a feiúra.

Atravessar a existência,
Esse fado, essa caatinga,
Com a Língua ressecada
E o estio dentro da fala.

Domar a Onça suasssuna
Da Vida graciliana,
Inda que o peito lanhado
Pela palavra, cardeiro;
Pela palavra, essa morte.

Aboiar angustiado,
Rumor de vozes queimando:
Viver é ser renitente,
Acender uma fogueira
Sobre os destroços, os destroços,
(...ai, que légua tão tirana...)
sobre os destroços da fúria.




Eurico
3º Lugar no Salão Pernambucano de Poesia –  1994



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Fonte da imagem:
http://www.ecodebate.com.br/2009/06/18/desertificacao-ameaca-pelo-menos-cem-paises/

Incelença pra terra que o sol matou
Elomar, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Heraldo do Monte



Bastidores da Peleja aqui


MILONGUEANDO UNS TROÇOS




Uma poética não pode ser adâmica, ou seja, jamais se instala num hipotético marco zero da epopéia humana. Todo fazer humano, essa aventura em poíesis, nasce em certa altitude histórica e está irremediavelmente embebida em seu caldo de culturas (no sentido popular que se dá a esse termo: usos, costumes, crenças, vigências consuetudinárias). Uma poética, mesmo miscigenada, não se pode alienar de si mesma, de sua terra, de sua gente, de sua língua. A poética que urde a canção que hoje lhes apresento é profundamente terrunha, telúrica. Canta o seu rincão com voz universal. Uma poética assim não é apenas brasileiríssima e gaúcha. É visceralmente humana:


Milongueando uns troços, de Mauro Moraes/voz: Bebeto Alves




Era inverno sim, eu perdido em mim
Rabiscava uns versos pra enganar a dor
O tédio, o pranto, o tombo
E encantava mágoas, milongueando sonhos
Mas havia em mim, um cismar doentio
De agregar estimas aos atalhos gastos
Dos compadres músicos
Repartindo as tralhas tendo o olhar recluso
Somos dessa aldeia filhos de parteiras
Na parelha injusta da cor
Somos pensadores sem pedir favores
Somos dessa plebe, febre de palavras
Na fronteira oculta dos rios
Somos cantadores sem pedir favores
Caso esta biboca, cova da desova
Dilarece o fruto, mastigando o gulo
O sumo, o tudo, o nada
Pego essa pandilha e engravido a rima
Se amor der sombra, a sesteada é pouca
Pra escorar no esteio, os livros, os arreios
O riso humano, o cusco, os ossos
E talvez, amigos, milongueando uns troços.




Postagem dedicada à minha amiga-escrita Rejane Martins,
que me apresentou o Mauro Moraes, poeta-milongueiro, compositor
desse verdadeiro tratado estético-filosófico, na linguagem dolente e avoenga dos pampas.




Imagem:
Boteco Tchê

domingo, agosto 07, 2011

CRISTALINOS (poemeto-escorço)

Imagem daqui

"A poesia: tão bom que me grudasse na córnea pra sempre."
                                  Tania Regina Contreiras



Alçar voo, com asas de ver:
Flamboyants, guris, abelhas...
(Sei que é parco o pão na mesa)
Mas se há crianças: beleza.

Ruflar pálpebras, ao sol:
(Ontem foi um dia duro.
Mas, foi ontem. Já passou.)
E essa brisa ajuda os olhos,
Revoando... são crianças.

Roçar nuvens com as pupilas,
Esses olhos, essas asas...
(Nada como estar em casa,
Onde há leveza... e crianças)

Não consigo perder a esperança.



Debussy - Children's Corner - Jimbo's Lullaby:


Mais sobre poema-escorço, aqui

sábado, agosto 06, 2011

GOG & MAGOG


“Si vis me fiere, dolendum est primus
ipsi tibi”
"Se queres que eu chore, é preciso primeiro
que sofras"
HORÁCIO

A José Guilherme Merquior



1
Vou passar a fronteira
entre oeste e leste mas o monstro
(de vidro)
invisível, impede o irmão
de ir abraçar o irmão sob o arco-
íris.


2
Magog pergunta a Gog:
por que, no teu laboratório
feérico
hemisférico
não paras de fabricar abismos?
Gog responde: se quiseres
que eu pare, pára tu primeiro.
Então serei teu companheiro.
Mas por mais que Magog interrogue
a Gog e Gog interrogue a Magog
algo os impede
de mútua confiança, de esperança.
É que o monstro de vidro
lhes suprime a opção entre antes
e depois, e se coloca,
irremovível, entre os dois.


3
Reúnem-se os dois numa mesa
de jogo.
A coexistência é azul
como um buquê de hortênsia,
sobre a mesa.
Mas o monstro de vidro, o Ninguém,
o Não-Objeto,
com a sua cauda invidrosível,
se interpõe
entre ambos, secreto.
E porque os naipes são de fogo,
a cartada se faz sem objeto.
E ambos vão dormir, de novo,
com um suicídio obrigatório
no corpo.


4
Onde está o monstro, que é de vidro
e, portanto, invisível, presente
mas simultaneamente ausente?
Na floresta que é, também,
de vidro.
Na cidade dos mútuos espelhos.
O seu nome: Ninguém.
Como o crismou o rei da Ítaca,
(ao seu tempo).
Mas, hoje: “Não-Objeto”.
É de vidro, mas não objeto.
Não objeto que por + concreto
+ secreto = não objeto.



5
Que adianta o meu objetivo,
a minha
objetiva de repórter,
se o meu objetivo é um não-objeto?
Se o que projeto, o mais concreto,
fica um objetivo sem objeto?
O Não-Objeto,
invisível, separa o irmão do irmão.
E muda a significação
das palavras
e dos gestos, através do vidro.
E amplia a configuração
das coisas
em seu vidro de aumento.
Para que Gog irrogue a culpa
a Magog e Magog a irrogue a Gog
em áspero atrito
de sílabas entre os dois
por um não querer fazer antes
o que o outro não quer fazer
depois.
Não-Objeto já agora abjeto
nele mora a não-arte, o não-evento,
o não-tigre, porém mais feroz
que um tigre espetáculo de ouro
para a minha (m)lira.
A idéia de o matar resultará
num projeto por falta de objeto.
Numa não-tigre que resultará salvo,
por falta de alvo.


6
O herói homérico matou
a hidra de sete cabeças num
relâmpago.
Belerofonte matou a Quimera
que lhe escapava à dimensão
do olho.
Teseu caçou o Minotauro ao dédalo
(touro áureo).
Quixote desbaratou os seus moinhos
de vento.
Jim Hull, montado no seu Boiazul,
saiu à caça do Acontecimento
que nunca está onde a polícia
o situa e institui (anacoluto).
Titov, em seu Vostok,
dá 17 voltas na órbita
da Terra,
vencendo o “poético” absoluto.
Como irei eu – olho de vidro –
caçar o monstro, que é – também –
de vidro
na floresta – também – de vidro?



7
Minhas 7 razões pra não chorar
(antiSamaritanas)
cercam-me na paisagem torta.
Exigem que eu lhes mostre
a minha pálpebra, o nervo ótico.
Os 7 cegos.
Da Babilônia me interrogam
sob a ogiva de um céu gótico.
Já perdido na selva de vidro
em busca do monstro de vidro
ved'io scritto al sommo d'una porta,
mas em “silk-screen”
queste parolé de colore oscuro:
“A MORTE É HOJE DIFERENTE
DA QUE COMETEU CAIM. O FRATICIDA
JÁ NÃO MATA, APENAS, SEU IRMÃO.
AQUELE QUE MATAR PRIMEIRO MATA-SE
A SI PRÓPRIO, AUTOMATICAMENTE”.


8
E lembro-me de que Magog
não queria parar a sua fábrica
(de abismos)
sem que primeiro Gog
parasse a sua.
Agora, a dialética é a mesma.
Como escolher, entre Magog e Gog
quem jogue a primeira pedra
se, AUTOMATICAMENTE, o homicida
é um suicida?
Se Gog já é o fim de Magog, até
na última sílaba?
Se o começo já será o fim?
Se por mais que Magog dialogue
com Gog ou que Gog dialogue com
Magog,
quem o Abel? Quem o Caim?
Na manhã desestreladalva
só a certeza de que nenhum
dos dois
se salvará é que nos salva.


9
Só assim, na entre-es (p) fera,
e porque Gog não quer que Magog
vá primeiro à Lua
nem Magog quer que Gog o faça
antes dele,
os dois farão a viagem, juntos.
E antes que Gog afogue o mundo
em fogo ou que Magog em fogo
o mundo afogue, a Lua
os pacificará, com
a sua alvura, o seu pudor
de flor, o seu dom
poético-magnético
(mediadora única e mediúnica)
E o monstro de vidro, o Não-
Objeto,
morrerá por falta
de objeto.
E para gáudio das crianças:
a u t o m a t i c a m e n t e.




Nota do blogueiro:
poema-libelo-civilizatório de Cassiano Ricardo
Leiam também: Ensaio para o Apocalipse, no blog Luz de Luma.

The Legend Of The Glass Mountain - Mantovani | Piano: Nino Rota



sexta-feira, agosto 05, 2011

ROSÁCEA (escorço-linguodental)

 rosácea












u’a (p)Rosa

*  * *medra
*  *  *do prado


outra brota (pétrea)
*   *   *do átrio

est’outra
medra da madre
*    *    *de pedra
(poliedro*de*esquadro)
*   *   *   *no adro
*   *   *   *o bruto fruto
*   *   *   *da (p)Rosa
*   *   *   *(b)rota
*   *   *   *de pé/
*   *   *   *dra.






Imagem Google













  Coro de Monges de Santo Domingo de Silos :





Faz o que tu queres pois é tudo da lei...




quarta-feira, agosto 03, 2011

AGOSTO (poema-escorço)



















Alça-se do nada o nada

Coisa efêmera
de alma leve
E arrastada por rajadas rarefeitas.


Pluma suave, livre, breve
coisa de seda com listras.
E empina-se
linha zero em losango de taliscas,


Rodopios, nuvens brancas
as lufadas, céu de anil.


Sopra a brisa na enseada.
Dá saudade.
Ainda espero...
(quero-quero)





Fonte da imagem:
céu azul

Sounds of Nature - Chinese Bamboo Flute Music

Comentário do processo criativo, aqui

BROA - (escorço em ragtimes)



















...trazia a fome dos náufragos na mente,
e, de repente,
o gesto atávico invade o trivial:

alçou até a boca um biscoito,
subitamente antiqüíssimo,
num automatismo quase ritual...




...emerge
em mim, remoto, um mot
:
broa
brote

brood
broot

(O gato dorme no convés...)

Talvez um déjà vu;
Um insight?

A brisa sobre o yacht.
Saudade...

Eu lanço um boat.






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 Charlie Parker & Chet Baker - Summertime


Comentário do processo criativo, aqui

segunda-feira, agosto 01, 2011

URO, no escuro





Não atarás a boca ao boi que debulha o grão.
1 Cor 9:9



Ó não perguntes pela poesia,
essa Palavra que não desvendo,
túpida e funda,
grão semeado,
morte fecunda
:
mesmo nas sombras
ouvindo Uros,
aflitos urros,
acenda a porta
que a Noite abriga.
Uro, no escuro,
raiva incontida.
Na sombra, o Uro,
selvagem ainda.
Urra, a obscura
força da vida,
protopoesia,
noturna e linda.


***
Fonte da img.:

Velho búfalo que voa

***
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