Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, julho 02, 2011

BEACH SOCCER LÍRICO (o fenômeno: futebol em poesia)

















Claude Debussy - Suíte Children's Corner: Jimbo's Lullaby




Quando o mar arrebenta nos recifes
do litoral da minha terra,
as ondas tentam articular uma palavra
(percebo isso, nitidamente,
num súbito acréscimo de receptividade)
:
Sempre...
Balbucia a arrebentação.

Caminho por essas praias há muito tempo.
Costumo palpar os grãos de areia com as pupilas.

Estranho fenômeno.

Sinto o fulgor da presença das coisas.
E isso assusta a minha frágil individualidade.

Estou no fenômeno.

Tocar as coisas com as palavras. Impossível.
Tocar as coisas é fazer filosofia.
Mas sou profundamente lírico.
Fenomenologicamente lírico.
Não há lirismo em epoché.
Minha consciência, irredutível,
abraça-se às coisas, liricamente:

Eu sou o fenômeno.

Os infantes jogam a péla secular,
Chutes de viés cruzam o horizonte.
E eu apreendo algo de musical,
nas variadas combinações dessa opereta de praia.
Danço com eles, volições entre parênteses,
eu-inteiro driblo, chuto e agarro-me à pelota.
Impossível suspender o juízo que faço de mim e das coisas:
Sou o próprio juiz que joga o jogo.

Sou a irrevogável consciência-das-minhas-circunstâncias.

As sensações são esses pequeninos crustáceos marinhos.
Ora afloram, ora escondem-se em mim.
Certas vezes empalideço de emoção, com a arte de um lance .
Mas choro mesmo, ao ver essas crianças tão raquíticas;
Me arreto, quando as ondas arrastam essa bola.

A bola rola e o planeta.
Passam-se as horas.

Agora a tarde cai sobre meus ombros
E sei que estou me despedindo das paisagens daqui.
(Sou o que vejo.)

Sinto-me um preso
Rumo ao degredo.
As ondas, ou algo indefinível,
Tentam iludir-me, ainda,
sussurrando essa palavra.

Sempre...


***


Fonte da imagem:
http://www.flickr.com/photos/namourfilho/2208612063/


Nota do blogueiro:
Sobre o verbête "péla" (bola), acentuado, leiamos o interessante sítio abaixo:
Etimologia da Pelada (por Mário Eduardo Viaro)

3 comentários:

C@uros@ disse...

O fenômeno que nos faz acreditar na divindade, lindo!

Aquilo a que chamamos felicidade consiste na harmonia e na serenidade, na consciência de uma finalidade, numa orientação positiva, convencida e decidida do espírito, ou seja na paz da alma.
Thomas Mann

forte abraço

c@urosa

Unknown disse...

Tão lindo, Eurico!

Fiquei imaginando sua terra, que também é a minha, só que não conheço.

Daqui torcerei para que o mar e todas as coisas intocáveis continuem balbuciando "SEMPRE".

Beijos

Mirze

Rejane Martins disse...

Especialíssimo esse teu poema, Eurico.
Vou te confessar que parei-e-parada-fiquei, emocionei-me-e-parada-fiquei. É muuuito bonito! Debussy aqui, neste canto das crianças, é pra sempre!
Esse teu ser-estar está nos olhos e nos sentidos de alguns dos meninos e meninas do mar, nos litorâneos que já são e nos adultos que um dia serão.
Facilitar crescer, pra mim, é fazer valer isso tudo - e como tu fazes isso bem!