Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quarta-feira, julho 28, 2010

Ranhuras no ventre da baleia



“Agora, erramos, orgulhosos e tristes, de ato vão em ato vão,
modelando vasos fechados e cortando lanças circulares,
não mais portadoras de aguilhão.
Uma besta espantosa, de índole recurva,
nasceu do cansaço universal e impera entre nós:
come voraz a cauda e engole a própria garganta.
Criações e atos perecem: sua respiração, interna, letal.”
********************** (Osman Lins, in AVALOVARA)


Nos últimos dias, venho sentindo a sensação de estar criando um inútil objeto estético. Não há como escapar desse sintoma neurótico, sendo cidadão de um mundo niilista. Poderia alguém viajar no ventre duma baleia sem ser digerido pelas secreções de suas vísceras; sem se corromper, sem sucumbir ante a volumosa força das entranhas do cetáceo?
Sempre acordo tomado pela angústia de ser parte de uma civilização que agoniza lentamente. Sento-me, todas as manhãs, diante dessa máquina e modelo uma estranha máscara mortuária. Folheio Osman Lins e deparo-me com a imagem desse animal autofágico. Somos contemporâneos de uma sociedade entrópica. De um organismo que se despedaça. Uma máquina programada para destruir a si mesma...
Enquanto modelo essa máscara, ouço ao fundo a voz roufenha e gutural de Chico Science: "...do caos à lama/da lama ao caos...". Pela janela, vejo a Ilha-sem-Deus. Invade-me as narinas, a maresia do ar. Meus cinco sentidos, as portas da minha alma, repentinamente alertas para essa apreensão lírica do mundo. Um lirismo arrebatador, como um súbito acréscimo da receptividade disto que me circunda. Percebo, apavorado, uma dilatação dionisíaca do real. Eis que o grande Pã me sufoca! Sinto-me diante da perspectiva de ser devorado pelas mandíbulas dessa alimária espantosa, que estertora, enquanto que me arrasta no seu ventre. Do fundo da alma me chega uma oitava de Camões:

“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Não sei por que insisto nesse tema. Minha psicanalista, ao ler a
ELEGIA PÓS-MODERNA, poema que eu acabara de escrever, aconselhou-me para que me ocupasse com amenidades.
— Ninguém se interessará por essas coisas, Poeta, ponderava ela.
Foi o bastante: abandonei seu consultório e nunca mais voltei lá.
Conforta-me constatar, ao ler Osman ou Roger Garaudy, essas duas grandes almas, que, desde 1968, eles também estavam debruçados sobre o mesmo tema... Nesse tempo, o Green Peace mal dava os primeiros vagidos...
Estaríamos todos criando uma obra inútil e sem sentido?
Pouco me importa! Arranharei, com unhas afiadas, o ventre verde-oliva desse anfíbio. Creio ser esta a única atitude possível a quem navega nessa bizarra embarcação.

***



Fonte da img.:
Jonas chega a Nínive


***

N. do A.:
o texto acima é fragmento de meu romance Bóstrix n'água.

terça-feira, julho 27, 2010

Broa (poema-escorço)





















(
...trazia a fome dos náufragos,
na mente,
e, de repente,
o gesto atávico
invadiu o trivial
:
alçou até a boca um biscoito,
subitamente antiqüíssimo;
um automatismo,
um quase ritual...
)

...emerge
em mim, remoto, um mot
:
broa
brote

brood
broot

(O gato dorme no convés...)

Talvez um déjà vu;
Um insight?
A brisa sobre o yacht.
Saudade...

Eu lanço um boat.







************************



Carlinhos do Amparo disse...

"Sobre teu processo criativo falo eu, compadre. Estás desobrigado de falar:
Essa palavra, escorço, já ouvi de ti, em outras prosas que tivemos. O termo escorço (escorzo) deriva do italiano scorciare, com tradução literal para encurtar, abreviar, resumir.
Mas, convivendo com os artistas d’Olinda, aprendemos escorço, pelo modo com que o tratavam os gregos, como perspectiva, tridimensionalidade, conceito ligado às questões da representação e da composição em pintura ou desenho; questões essas retomadas, depois, pelos Renascentistas.
Sei, no entanto, que ao definir esse texto como poema-escorço, não estás a falar da perspectiva meramente visual.
Trata-se da profundidade intelectual.
Aquilo que se obtém verticalizando a leitura, buscando enxergar além da superfície do texto, ou seja, buscando intelligere, ou ler dentro. O escorço, portanto, transforma a superfície da coisa (seja uma pintura, um poema, uma escultura) em algo virtualmente profundo. A obra de arte ganha, assim, uma terceira dimensão.

Ler Broa sem fazer um esforço de perspectiva, sem perceber o que há de escorço no poema, a tentativa de tridimensionalidade intelectual, deixará o leitor com um mero biscoito naval entre as mãos: visão rasa, superficial, da massa bolorenta e amarga. Um simples biscoito e nada mais.

Poema-escorço é também poema-alusão, potencializando as pequenas coisas visíveis no texto, breves, mas, densas, em sua perspectiva de profundidade temporal (histórica), espacial (geográfica), visual (gráfica) ou até auditiva (musical), e, por que não dizer, num sentido amplo, sinestésica.
Precisa-se também atentar para a etimologia dos verbetes, que, tão ao teu estilo, costumas chamar de arqueologia da palavra.

Creio que foi isso que discutimos, dia desses, à sombra de uma mangueira frondosa e centenária, lá no Sítio d’Olinda.

Abraço, meu compadre."

sábado, julho 24, 2010

Um passarinho...


























Um pássaro de seis asas...
Embora o rugir mecânico das coisas,
Um pássaro de seis...
E a urbe e o orbe
E o universo se desdobre,
Um pássaro...
Atávicos urros na estação metroviária neolítica,
Um passarinho...
(dilata-se o real)
Eurico
Jun/1995

fonte da imagem:
O Pombo - Escher

Pássaro






O poema é o pássaro,
Vôo repentino:
Coisa no fulgor de sua própria presença;
O poema é o impacto,
Olhos de menino:
Nariz esmagado nas vidraças da essência;
Assombro lírico,
Fascínio órfico,
Subitânea iluminação do ser:
O poema é o pássaro,
Ave essencial.


Eurico


Nota:
Poemeto-collage, extraído do comentário do compadre Carlinhos do Amparo, na postagem anterior. rs

sexta-feira, julho 23, 2010

Por que Eu-lírico?




















A propósito da série de poemas que iniciei dias atrás, com o Tamandaré, transcrevo aqui um brevíssimo comentário do mestre Carlinhos do Amparo, extraído do zine Eu-lírico (impresso), nº 6, edição de junho/1995:



Lirismo, sim. Mas não lirismo comedido: pura contemplação da natureza ou catártica expressão das emoções. Lirismo, sim. Porém centrado em uma analítica da existência, se isso lá é possível. Algo como o que nos fala G. M. Kujawski:

“Adotamos aqui o lirismo como método fenomenológico, rigorosamente descritivo, para aprofundar nosso conhecimento da natureza”. (Perspectivas Filosóficas, 1983).

Ou seja:
O poeta tropeça com o estar-aí da coisa. Qualquer coisa: um pássaro, uma pedra (como no célebre poema drummondiano), um recorte qualquer da realidade. E esse choque com a patência da coisa exige a mediação lírica, o assombro, o maravilhamento, a subitânea iluminação do ser. Nesse instante, a Palavra se torna instrumento de reaproximação com o derredor, com a circum-stantia, com a realidade tal como a encontramos.
Uma atitude irrevogável e consciente presentifica-se no eu enunciador do poema, o eu-lírico: a atitude de auscultador, não de estrelas, como em Bilac, mas auscultador da Existência.
Um poema não responde à pergunta: por que um pássaro está aí em vez de não estar?
O poema é o pássaro, vôo repentino, é a coisa no fulgor de sua presença, é o impacto como o essencial. Mas o poema é, antes, o fascínio órfico, o lírico palpitar do real...



Transcrevo também o meu poemeto (nem tão rigorosamente descritivo, tampouco fenomenológico, rsrsrs) que originou o comentário acima, naquela edição de 15 anos atrás, do meu antigo zine-colagem, Eu-lírico:



Um pássaro de seis asas...
Embora o rugir mecânico das coisas,
Um pássaro de seis...
E a urbe e o orbe
E o universo se desdobre,
Um pássaro...
Atávicos urros na estação metroviária neolítica,
Um passarinho...
(dilata-se o real)


Eurico
Jun/1995
************


Fonte da imagem:
Pedra no Caminho

terça-feira, julho 20, 2010

Refloresta

























imagem Google



Luz e sombra, verde, funda,
coisa densa, quase bruma,
face úmida de alguma poesia...

Chã de oculto e inculto húmus,
seixos, limo, correnteza.
Voz de arroio em sons potáveis,
harmoniosa beleza...

Sob a sombra, prenhe, fecunda,
mãe, frondosa,
nessa ubérrima penumbra,
misteriosa,
refloresce, vária e miúda,
numinosa,
cristalina e imensa, a Vida...


segunda-feira, julho 19, 2010

Mergulho
























imagem Google

a realidade e as águas..
lanço-me a elas tal como as encontro

quem se atira a um rio
não lhe indaga o seu ser

lancei-me ao rio e existo
isso está patente
mas, de onde me vem o espanto?
Do evidente
:
a realidade e o rio...
surpreendo-me dentro dela
e resisto em braçadas natatórias.

domingo, julho 18, 2010

Tamandaré



Farfalham folhas
Flutuo

In/vento um vento
Levito

...Ouve-se um suave assovio
de invisível gaivota

Asas azuis deslizando
num azulado vazio...


***


Imagem e motivo do poemeto:
(foto de Paula Barros)

O Lagarto-planta





quarta-feira, julho 14, 2010

Bosquejos






















Porque agora vemos por espelho, em enigma,
mas então veremos face a face;
agora conheço em parte,
mas então conhecerei como também sou conhecido.
...............................................................1 Cor 13:12




Ninguém, nunca jamais, viu qualquer coisa inteira.
As coisas são metades, como, à noite, a lua.
Não é possível apreender totalidade alguma...

Senti isso, em certo dia, ao me embrenhar num bosque.
Depois de um caminhar inútil, por clareiras,
Restou-me então, do bosque,
essa impressão de coisa impenetrável:

Algumas árvores mais próximas
ou em perspectiva,
Até onde a vista humana pode ir. E só.

E descobri então que
Os bosques nos escapam sempre.
Os bosques que pensamos ver
são apenas bosquejos, alusões de uma
mata, selva ideal,
jamais vista em sua inteireza.

Um bosque é abstração de manchas,
Coisa sempre in fieri.
Um bosque é fugidia sensação de luz e cor.
A mesma que se tem ao olhar um Manet:
Alusões a vigorosas pinceladas.
Mas sempre alusões.
Assim, um bosque é quase nada.
Metade dele nunca é.

É a mesma ilusão (de ótica) de quem,
no espelho
encontra a face do mistério,
ou seja, a parte dele que se pode ver.
E o que é essa parte que não se pode ver?
Eis a questão!

O ser do bosque é assim,
Face no espelho;
Aquela que se pode ver.
No entanto, o bosque, mancha esverdeada,
É ainda mais que nós.
Somos a outra metade do nada,
Escorços de uma face invisível e azulada.
Eternos quase-nós.


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Fonte imagem:
Almoço na relva - Édouard Manet


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Concluo essa série de impressões , com a citação de Giulio Carlo Argan, que encontrei em O Pensador Selvagem (com minhas sinceras desculpas pelas imperfeições dos trabalhos):


"(...)Se o artista se propõe a exprimir a sensação em estado puro, antes de ser elaborada e corrigida pelo intelecto, é porque ele julga que a sensação é uma experiência autêntica, e a noção intelectual uma experiência não-autêntica, viciada por preconceitos ou convenções. A sensação, portanto, não é um dado, mas um estado da consciência; ademais, a consciência não se realiza na experiência vivida e refletida, e sim na experiência que se vive. Identifica-se, pois, com a própria existência."
.............................................................Argan



Nota:
a reedição de Bosquejos se deu pra comemorar o novo modelo do blogue.
Esse bosque de bambus é de um lirismo profundo e reflexivo...

terça-feira, julho 06, 2010

Sobrevôo





















Um vôo há de revelar-se lírico e livre.
Volitam os anjos.
Adejam as borboletas.
Voejam os pássaros.
Esvoaçam as plumas...

Já um sobrevôo é coisa técnica,
de espécie árida e cabralina.
Serve para exercícios pouco poéticos.
Por isso não se deve voar sobre populações flageladas.
A hora é grave e exige um sobrevôo.

Mesmo que observemos a extensão da dor através de binóculos
e bem assentados em poltronas ejetáveis,
a dor cinematográfica nos comove,
mas não nos alcança, ainda...
(Quem sabe se, seguindo antigo conselho egípcio,
construíssemos nossas moradas longe dos aluviões...)

Ontem, víamos apenas as queimadas, lá embaixo.
Pequeninos animais assustados a correr do fogo;
Depois, viriam imensos canaviais, encravados em nossa alma,
junto com a nossa orgulhosa tradição colonial;
A felicidade do açúcar, do melado, da rapadura...

Surgiriam então belos vilarejos ao longo dos rios.
Casinhas enfileiradas feito centopéias.
Praças da Matriz,
Ruas do Comércio:
bóias-frias felizes a consumir parabólicas.

(Como haveríamos de pensar em remorso pelo fim das matas ciliares?)

Agora os técnicos sobrevoam a tragédia anunciada...
Imagens de um infeliz clichê, em que não há nenhum lirismo.

Há a constatação histórica do óbvio.
E o óbvio não é poético:

Ergueram-se túmulos às margens dos rios,
e os batizaram:
Cidades.




Fonte da imagem:
http://wings.avkids.com/Book/Nature/Images/wright_glider.jpg


Pós-escrito em 11/08/2010:

E eu que pensava que estava viajando na maionese, vejo que há muito tempo os urbanistas sabem que se deve respeitar o rio. O CREA_PE vai ajudar a reflorestar as margens do Rio Una, em Palmares, Barreiros e outras cidades erguidas sobre as matas ciliares. Leia aqui.

segunda-feira, julho 05, 2010

Beach Soccer Lírico (futebol e poesia)



















Quando o mar arrebenta nos recifes
Do litoral da minha terra
As ondas tentam articular uma palavra.
(percebo isso, nitidamente,
num súbito acréscimo de receptividade)

Sempre...
balbucia a arrebentação.

Caminho por essas praias há muito tempo.
Costumo apalpar os grãos de areia com as pupilas.

Estranho fenômeno.

Sinto o fulgor da presença das coisas.
E isso assusta a minha frágil individualidade.

Estou no fenômeno.

Tocar as coisas com as palavras. Impossível.
Tocar as coisas é fazer filosofia.
Mas sou profundamente lírico.
Fenomenologicamente lírico.
Não há lirismo em epoché.
Minha consciência, irredutível,
abraça-se às coisas, liricamente:

Eu sou o fenômeno.

Os infantes jogam a péla secular,
Chutes de viés cruzam o horizonte.
E eu apreendo algo de musical,
nas variadas combinações dessa opereta de praia.
Danço com eles, volições entre parênteses,
eu-inteiro driblo, chuto e agarro-me à pelota.
Impossível suspender o juízo que faço de mim e das coisas:
Sou o próprio juiz que joga o jogo.

Sou a irrevogável consciência-das-minhas-circunstâncias.

As sensações são esses pequeninos crustáceos marinhos.
Ora afloram, ora escondem-se em mim.
Certas vezes empalideço de emoção, com a arte de um lance .
Mas choro mesmo, ao ver essas crianças tão raquíticas;
Me arreto, quando as ondas arrastam essa bola.

A bola rola e o planeta.
Passam-se as horas.

Agora a tarde cai sobre meus ombros
E sei que estou me despedindo das paisagens daqui.
(Sou o que vejo.)

Sinto-me um preso
Rumo ao degredo.
As ondas, ou algo indefinível,
Tentam iludir-me, ainda,
sussurrando essa palavra.

Sempre...



Fonte da imagem:
http://www.flickr.com/photos/namourfilho/2208612063/


Nota do blogueiro:
Sobre o verbête "péla" (bola), acentuado, leiamos o interessante sítio abaixo:
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11548