Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, abril 15, 2010

ODE ESCATOLÓGICA (antipoema)
































"Há um lixo que em todos os sentidos, subjaz nas grandes tragédias."

....................................................................................................................(Mai)


Dava-nos a impressão de que habitávamos
em tranquilos sítios virtuais
e de que nossas casinhas humildes
eram como homepages protegidas no ciberespaço...

Mas, uma abrupta avalanche de lama e lixo nos ensinou
que nossas verdadeiras comunidades de relacionamento
estavam mesmo dependuradas
nos inseguros aclives dos outeiros,
nas margens, nada plácidas, dos alagados,
nos palafitas sobre a maré...

São inúteis os alicerces,
fincados sobre a escória urbana...

Duro foi saber que ziguezagueávamos
por vielas assistemáticas
nos mil platôs da falácia pós-moderna,
com nossas parabólicas plugadas nessa rede
da ilusória arquitetura rizomática...
Ai, os conceitos, as analogias, as metáforas,
o reducionismo biológico,
tudo, tudo desliza morro abaixo,
(apesar de restar ainda a estética do Oiticica.)

Identifiquem-nos agora, os soterrados,
numerem nossos corpos
e classifiquem-nos em seus registros
e saberão que muitos de nós somos os nômades,
os excluídos, sem terra, os desterritorializados,
cuja única singularidade
é estar na mais comum e corriqueira miséria humana...
Somos os cadáveres sem voz e sem história,
e cuja geografia está sob os escombros
da obsolescência das coisas
consumidas, supérflua e cotidianamente...
Somos os soterrados,
dessa babélica orbe virtual,
edificada sobre as falhas geológicas da ética da imanência!
Somos incautos avestruzes,
as consciências enfiadas em buracos 3D,
a buscar, na seiva esquemática (e pouco útil)
de raízes emaranhadas sob a relva,um sentido novo para a velha vida des/humana
ou algum antivírus para o nosso escatológico amor... fati.



fonte da img:
http://agrandegaia.files.wordpress.com/2009/10/estamira2.jpg

Este antipoema é dedicado a
Dona Estamira, do Jardim Gramacho-RJ

10 comentários:

Dauri Batisti disse...

Li, reli e senti um tremor. Por ser um antipoema ora fui e me perdi em entendimentos, ora fui e me achei em incompreensões. Falas dos que nos encontramos aqui (cada um na sua página) ao falar dos desmoronamentos. Falas dos desmoraonamentos para falar do que deixamos de construir com nossos relacionamentos virtuais. Afinal, talvez, um sentido sempre será outro sentido... Um poeta sempre fala várias linguas com as mesmas e velhas palavras de um único idioma.

Abraço.

lula eurico disse...

É irmão Dauri, não só nós, eles, "os sem PC", os excluídos digitais, também navegam nas LAN's da vida.
Mas é um antipoema babélico, já que as linguagens de qualquer tipo não conseguem dizer da emoção. Vemos tudo à volta, intuímos um dentro, mas somos impotentes diante disso, o intraduzível.
Por isso tentei não datar este antipoema babélico. Quem sabe daqui 50 ou 100 anos, alguém que habite os morros e alagados, em casas seguras e humanizadas, nem de longe perceba que uma favela e tudo o que nela havia deslizou sobre um lixão... isso depõe contra nossa civilização, contra nossa inteligentzia, nossa religião, nosso Estado-nação. Isso nos desnuda, amigo, Dauri. Enquanto gigabytes cruzam o planeta virtual, as pessoas comem, dormem e erguem casas sobre o lixo. De que serve a tecnologia?
E o que é tudo isso aqui?
Se somos só isso que se vê, justificamos a bomba sobre Nagazaki,( se a primeira sobre Hiroshima já havia encerrado a guerra, justificamos qualquer bomba), inclusive o homem-bomba.
Deve haver um sentido maior para isso... um Grande Software, um Grande Irmão, a Mente Quântica, o Tao, o Cristo Cósmico... talvez a Grande Mãe... e deve haver moradas em outras dimensões, sei lá...
o que não pode é tanta tecnologia e tão pouco sentido.
E olhe que não é do Brasil que falo. É do mundo. Ficam claros os limites do mundo, quando um vulcão na Islândia paralisa os aviões por toda a Europa, comprometendo os sacrossantos lucros do capitalismo.
A ciência, irmão, ampliou o nosso cérebro, desvendou nosso genoma... mas a ética, a bioética, a ética da vida depende de homens e mulheres verdadeiramente fraternos... (ou seja, de homens como os Presidentes do Irã e de Israel?)...
Bem, o escatológico desse poema não significa o fim dos tempos, mas "excrementos", mesmo: lixo, dejetos, a escória de todos os tempos...
Apesar da pós-moderna rede rizomática ou da milenar epistemologia arborescente, enquanto houver a África miserável, as favelas do mundo todo, a indiferença e o desamor, toda a ciência humana é pouco útil, quase inútil...

Abraço fraterno.

Sueli Maia (Mai) disse...

Teu texto foi fundo na 'superficialidade'.
O degradante e o inerte spectatore.
E eu sentí uma dor no estômago.
Sem palavras, Eurico, teu texto merece uma reflexão maior.
Um beijo imenso.
carinho e admiração,
tua amiga de infância.

lula eurico disse...

E pensar que somos colibris jogando gotas d'água nesse colossal incêndio, né Mai, né Dauri?
Não posso esquecer de que minha analista (gente fina e bem intencionada), lá pelos idos de 1988, aconselhou-me a não escrever/pensar sobre essas coisas...
Quem sabe me tivesse livrado da gastrite erosiva, quem sabe... rsrsrs

lula eurico disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jens disse...

Oi Eurico.
O teu antipoema reflete a dicotomia do nosso tempo: uns desfrutam do esplendor da tecnologia de ponta enquanto outros vivem em condições alguns degraus abaixo do mínimo humanamente aceitável. A maravilha e a infâmia convivem lado a lado, como se fosse uma coisa natural. Ainda bem que nem todos perderam a capacidade de estarrecer-se com indignidade da miséria, como provam os teus versos. Como disse Érico Veríssmo, é preciso acender a nossa vela para evitar que caia a escuridão sobre o nosso mundo. Você está fazendo a sua parte. Muitos de nós (eu incluso) não pode dizer o mesmo.

Um abraço.

lula eurico disse...

Jens, meu caro amigo, que dizes?
Nada faço, amigo. Descrever a situação, fazer essa espécie de "reportagem" poética (ou antipoética?) é apenas declarar-se impotente... Creio que além da gastrite rsrsrs nada mais consegui com essas idéias...
No entanto, amigo Jens, temos uma aliada: a natureza. Estamos chegando aos limites da nossa ação destruidora. Agora ela começa a nos dizer: basta! rs
E como ainda não achamos água na Lua... acho melhor nos curvarmos a ela. Né mesmo?
Dá cá um abraçamigo e fraterno.
E nos juntemos à nossa mãe, a natureza... antes tarde do que nunca mais. hehehe

Ilaine disse...

Palavras que marcam, Eurico. Que convertem em dor. Estou aqui lendo e relendo o teu antipoema e me surpreendo com cada palavra. E como compreendê-lo? Em que mundo vivemos? E em que eu colaboro para torná-lo menos violento?

Abraço,com carinho

Vivian disse...

...enquanto corria meus olhos
sobre seu texto fui me deixando
levar a Darfur (Sudão),
onde milhares de seres humanos
vivem os horrores de uma guerra
sem fim, uma guerra sem razão,
como se houvesse razões para
guerrear.

a vitória do "forte" sobre
o fraco?

o que é forte, e o que é fraco
neste hospício chamado terra?

bj

Rejane Martins disse...

eu brindo aqui - hoje com água - talvez o mais translúcido tema por mim percorrido nestas estradas de eu-lírico.
eu brindo aqui por essa Ode Escatológica, traduzida de forma tão clara pras gentes que acessam internet.
eu brindo aqui pela possibilidade de saúde e felicidade pública amanhã e depois.