Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, outubro 29, 2009

JACINTA





























Pobre de mim, que pastoreio poemas reflexivos,
Como um rebanho de cabras assustadas...
Cabras aflitas que se precipitam no abismo da dúvida.
Cabras de um deserto sem transcendência.

Ai de mim!
Alma necessitada de verdades cientificamente demonstráveis,
Em meio ao ilógico e absurdo mundar do mundo.
Há meio século indago das coisas o seu começo.
Tateio por paredes de cavernas ancestrais e nada.
De que me adianta o Carbono 14
E as medições arqueológicas de sítios milenares.

Trocaria toda a ciência humana
Trocaria até mesmo os grandes olhos do Hubble,
que vasculha inutilmente o espaço estelar,
pelo alcance de teus pequeninos e inocentes olhos, Jacinta!
Trocaria esses meus cinquent'anos de busca
pelos teus dez breves aninhos.

Hoje ufólogos perseguem ovnis,
teólogos examinam manuscritos apócrifos,
e os olhos do mundo se voltam quânticos para a realidade.

A ti bastaram singelos dez anos
Dez inocentes aninhos,
para ter olhos de ver e ouvidos de ouvir.

Que essa luz angelical ilumine o caminho em que pastoreio
essas cabras cheias de um lirismo agnóstico e vão.

Asim seja.




@@@@@@@@@@@@@@@@

Fonte da imagem:
JACINTA DE JESUS MARTO vidente de Fátima, Beata
1910-1920

quarta-feira, outubro 21, 2009

TERESA (prece em noite escura)



























Há dias em que eu também perscruto o silêncio
E os meus olhos erram pelo vazio.
Não nego: busco uma voz, uma palavra, uma certeza.
Quando Deus silencia, também faz-se escuro em mim.
Mas eu... eu não sou nada.
Eu sou ínfimo.
Sou um sem sentido.
Entanto, imaginava que tu Teresa,
enquanto cuidavas de teus pequeninos enfermos
trazias a alma aquecida pelo próprio Criador.
E pensava:
esse era o combustível de tão imensa caridade.
Teresa deleitava-se em gozos celestiais.
Conversava com arcanjos e serafins.
Qual nada!
Jamais imaginaria que ela sofresse disso que sofro,
Desse mesmo e terrível mal.
Jamais imaginei que havia na alma de Teresa uma noite escura
E a dura solidão de noiva que se julga rejeitada.

Jamais imaginei que Teresa tirava suas forças da angústia,
Da sensação de um Deus inacessível,
Do silencio incomensurável de Deus.

Ao descobrir o véu da noite em tua alma, Teresa, mãe de Calcutá,
Madre de um mundo miserável e sem fé,
Fico envergonhado da minha indiferença diante do outro.
Tua dúvida, Teresa, não é, como essa minha, apática e vazia.
Tu duvidavas amando.
E eu apenas... duvido.
Tu duvidavas tratando leprosos.
E eu apenas... duvido.

Tua dúvida era submissa ao teu amor.
Dúvida santa e misteriosa...
Dela, e apesar dela, retiravas a força para realizar tão grande caridade.
Hoje, Teresa, tua dúvida ilumina a minha alma
Como um paradoxal clarão em meu des/caminho de Damasco.


@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Consultem o tema em:


O Silêncio de Deus
e
A noite escura de Madre Teresa de Calcutá


Fonte da imagem:
Madre Teresa de Calcutá

terça-feira, outubro 20, 2009

DORA





<


















Fico com a beleza da resposta das crianças:
E a vida?
É bonita e é bonita!
....................Gonzaguinha



Naquele estranho dia
Procurei os meus chinelos sob a cama
E tive a surpresa do abismo:
A cama deslizava pelo espaço
E havia anos-luz entre os chinelos e o meu braço.

Mais estranho ainda foi saber que a mesa do café
Girava junto com as cadeiras,
Junto comigo inteiro.
Meu ego e a xícara
Atravessávamos Peixes, quase adentrando em Aquarius.

Corri até a janela e o Sol me parecia maior do que Sempre.
Numinoso!
Pronunciei essa palavra automaticamente
E senti a água de meu corpo se agitar,
Como se agita a flor d'água ao receber o impacto de uma pedrinha.

Foi mesmo um dia estranho.
Descobri que sou um emaranhado de energia
E que a realidade é um feixe de possibilidades.
Isso até hoje me faz rir (de mim?).
Escolho o riso entre as minhas realidades possíveis.

Creio que eu jamais escolheria entrar naquele trem
Se estivesse no lugar da Dora Orecife.
Falta-me algo mais profundo:
O amor não-sexual, aquele que transcende a dor.
Que vence o amor a si mesmo.
O desapego dos iogues;
Dos mártires hagiológicos.
Eu sei que não entraria naquele trem, como fez a Dora.
Porque me amo extremadamente.
(Como é estranho esse amor que me lança, dia após dia, em direção aos meus chinelos).
E não é esse amor por mim, o que torna a vida uma bela película.

Já o amor de Dora Orecife é solar:
Uma espécie de amor que inunda tudo com reverberações holísticas,
Que se doa até a própria extinção;
Como o amor que faz girar os planetas
E mantê-los em órbitas;
E que os mantém aquecidos por translações inteiras.
O amor que dessaliniza as águas do oceano e as faz chover sobre os continentes.
O amor da fotossíntese.
Da grande síntese.
Pode-se ver esse Amor da minha janela há alguns bilhões de anos.
E ele faz girar vertiginosamente minha alma e essa xícara de café.
Esse Amor me faz sentir que a vida é bela
Mesmo em círculos.
A vida é bela.


Fonte da imagem:


domingo, outubro 04, 2009

LUIZA (experiência quântica)






























E criou Deus o homem à sua imagem:
à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou.
..............................Gênesis, 1:27

Eu disse: Vós sois deuses...
..............................Salmos, 82:6

"O homem é um deus quando sonha
E um mendigo quando pensa."
...................................Hölderlin



Estamos na nova Manhã de tudo.
Manhã eterna e pagã.
Agora a Femina sobe a encosta
do outeiro, tangendo um rebanho de cabras.
Os balidos da Aurora
enchem o Caminho de símbolos e de bosta.
O planeta recomeça nessas tetas.
O planeta carece de regaço ma(e)terno.


Estamos na moderna Manhã de tudo.
O mundo ainda anda ab/surdo.
Há perplexidade entre os machinhos;
Mas já se escuta o balbucio atrevido das infantas.
O bélico dará lugar ao belo.
Desde sempre se anunciava
essa ascensão da Anima.

Estamos na manhã do domingo.
Os deuses estão alegres
e lançam os dados comigo.
Fazem apostas,
Divertem-se, os deuses. É domingo.
Sim, é domingo,
mas as deusas, como Deus, trabalham até hoje:

Encontrei Luiza na feira de orgânicos;
Trazia flores nas mãos
e uma sacola biodegradável.
Seus olhos luziam,
enquanto proseava com outras mulheres.
Seu sorriso era potável
como as águas dos rios futuros.
Havia cumplicidade e ternura.
Falava-se de gravidez e de luz.
Observava-me, quântica.
E me acenava, semiótica.
Quanta beleza!
Quanta esperança!

Quanta...

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Dedicatória:

às minhas filhas já nascidas e que hão de nascer,
às filhas das minhas filhas, minhas futuras netinhas,
às minhas sobrinhas mineirinhas, à minha Allana (saudade),
e a todas as minhas amigas virtuais, ou não,
extensivo às suas filhas, netas, sobrinhas.
Enfim, o poema é dedicado ao ser feminino.

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

N. do A.:

Não sei de onde e nem porquê me vem à mente
a célebre frase de Flaubert:
"Emma Bovary c'est moi". rsrsrs
Mas não esqueçam que aqui habita um Eu-lírico. rs)



Fonte da imagem:
Mulher Quântica

Ouçam a Luiza, do Tom Jobim...