Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, setembro 11, 2009

Flor d'água (flagrante pós-moderno)




















Há muito tempo, os cientistas
inventaram o pavimento
e há poucos meses, os urbanistas
asfaltaram a minha rua.
Há poucos dias, os ufanistas
fizeram uma festa ao calçamento,
uma grandiosa festa inaugural.

Um belo dia, um desses dias quentes de verão,
o Sol evaporou o mar
e o vento trouxe as águas
em nuvens carregadas, sobre o meu lugar.
Choveu a cântaros.
Choveu, choveu, choveu.
E, quando enfim veio a estiada,
a água ficou, dias a fio, empoçada,
bem rente ao meio fio, junto à calçada.
O tempo e a poeira
se uniram, num concerto
e fizeram da poça, um lamaçal, pútrido e fétido,
desses que chamam
de esgoto a céu aberto.
A fedentina ficou insuportável.
Deveras nauseabundo aquele odor.

Mas, em certa manhã, do mês de março
abri a janelinha do terraço,
e, estarrecido, vi uma flor, uma airosa flor,
medrando assim tão bela,
uma flor naquele charco.

Compreendi então minha tolice
ao criticar tão sábios urbanistas,
sem lhes compreender os bons propósitos.
Por ser poeta e cheio de sandices,
nunca iria imaginar
que os doutores
queriam apenas demonstrar
a força que há no Sol, no ar,
na fotossíntese,
isso que traz misteriosamente, à tona
a vida submersa que há na lama.

Alguém me poderia retrucar:
mas, a cidade assim pavimentada
não dá vazão à força da enxurrada.
inunda tudo, os carros bóiam...

Pobres mortais, não entendem a ciência!
Devem ser poetas, como eu,
que sonham com um tempo das estradas poeirentas,
em que a água se infiltrava pelo solo,
formando esses tais lençóis freáticos.
Para que servem rios subterrâneos,
aquíferos imensos, em covas nunca vistas?
Somos uns néscios, tolos, saudosistas;
nada entendemos de asfalto sobre as pistas.
Ah, não fosse aquele sábio cientista
que, aliado ao inteligente urbanista,
criou o alagamento em minha rua,
jamais teria eu aqui tão bela vista
de tão grande valor, que nada paga:
a bela flor, soberba e airosa,
a raríssima flor da poça d'água.

Fonte da imagem:http://garatujando.blogs.sapo.pt/arquivo/Flor%20no%20cascalho.jpg



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9 comentários:

Vinicius disse...

A natureza é tão complexa e ao mesmo tempo tão bela.
Belo poema amigo.
um grande abraço.

Unknown disse...

Conseguiste transformar em poema um sentimento que tive certa vez quando fiquei maravilhada vendo uma cena idêntica.
Tenho uma fantasia de caminhar solitária e sem rumo por uma estradinha sem asfalto,rsrsrs...
Fica bem, bom fim de semana, com muita paz.
Beijos

lula eurico disse...

TEnho um compadre que diz que eu não conseguiria viver sem as coisas da modernidade. Diz ele que os carros, caminhões, etc, precisam do asfalto. E eu fico pensando cá comigo. Se desde que o mundo é mundo a gente impermeabilizasse o solo, não teríamos os aquíferos. Mas, o poema foi só uma ironica brincadeira com os alagamentos que estão havendo por todo o Brasil. Mesmo na cidade mais rica, São Paulo, com todo o conhecimento e toda a ciência, a vida para por qualquer chuvarada. rsrsrs

Ah, minha ruela não foi pavimentada, graças a Deus. É curtinha e só tem 3 casas. Os prefeitos sempre nos esquecem. kkk

Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Oi Vinicius,
é verdade, tão bela a natureza. Ela insiste em nos dar chances de continuarmos existindo enquanto espécie, mas...

Abraço fraterno.

Passageira disse...

Amado poeta! Me perdoe pela ausência (que parece se estender sempre). Vi lá embaixo qu vc me indicou pro Meme (detesto quae todos, mas gostei deste) e vou respondê-lo, tá? Te agradeço pela lembrança.
Vi tb poemas lindos. Entre eles, o Poemada Relatividade Geral. Belissimo. Destes que a gente quer levar, guardar e reler uma vez em sempre.
Qto a este, é mais um dos seus poemas-sentimento, estes em que vc nos leva a pensar na função do humano nesta terra. Pra ser bem honesta, não penso em estradinhas de terra. Sou urbanóide! E não sou poeta! rs...
Grande beijo, amigo! E saudades muitas!

Jens disse...

Oi Eurico.
Em meio ao asfalto e ao nojo, nasce uma flor. Nos teus versos, como em Drummond, a vida insiste e resiste.

Um abraço

lula eurico disse...

Amiga Euza, que bom te ver. Tb não creio na volta ao passado rs, mas torço para que não abreviemos os aquíferos. Fiz uma postagem no Cultura Solidária, transcrita do Deslimites do Ser, que trata disso e mais algumas coisa. Chama-se: uma mensagem vida do futuro.

Abraço fra/terno.

lula eurico disse...

Jens, tinha em mente o Drummond o tempo todo. A flor dele, mais sofisticada, nasce do asfalto... a minha, da poça de lama. rsrsrs Mas, como dizes, a vida insiste, apesar da distância de anos-luz entre os poetas Eurico e Drummond. kkk

Ilaine disse...

O poeta! O urbanista!
O poeta, e a flor...
O urbanista, e o asfalto.

EU- lírico li e adorei!