Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, setembro 22, 2009

De barros e asas: MANOEL !



























fotopoema da blogueira Flor



RETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA
................Manoel de Barros, in "O Guardador de Águas"


I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.


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Esta postagem eu dedico ao poeta
Diógenes Afonso, grávido de poesia!

Fonte do texto:
Jornal de Poesia

Fonte da imagem:
Interlúdio em flor

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MANOEL DE BARROS, poeta mato-grossense, nascido para a vida em 1916 e parido para a poesia em 1937, com a concepção do livro - "Poemas concebidos sem pecado". Passou a ser mais conhecido a partir do ano de 1998, quando ganhou o prêmio Cecília Meireles, de Literatura/Poesia, com o "Livro sobre Nada".

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15 comentários:

Paula disse...

"Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes"

Disse tudo!

Abraço, amigo!

lula eurico disse...

P!
eu me re-encantei pelo Manoel, quando o reli, ontem, no Terra Brasilis.blogspot.com, do meu amigo Diógenes Afonso.
Outra maravilha, que a TVU mostrou ontem, dona Cora Coralina, de Goiás, do Brasil. Que mulher linda. E quanta poesia!
Em breve vou postar algo dela aqui.

Abraçamigo e fra/terno.

Ilaine disse...

Ah, querido poeta! Que tão bonito texto. Ótima escolha!

Um passeio maravilhoso, de mãos dadas com a palavra. "No silêncio líquido...Choveu na palavra onde eu estava!"

Abraço carinhoso

Anônimo disse...

O poeta disse tudo...
Mas eu sempre falo que poesia é a alma misturada ao papel!!
Beijos, querido!!

Jens disse...

Camarada Eurico, dizem alguns que a poesia é o pão do espírito. Aqui no teu espaço - a exemplo do Balaio Porreta do professor Moacy Cirne - a refeição é farta. Saio empaturrado.

Um abraço.

lula eurico disse...

Queridos, Ila, Jens e Su,

Grato pelas visitas, mas hj vou lhes devolver os comentários na casa de cada um. rsrsrs Estou muito enfurnado aqui no Eu-lírico.
hj vou navegar pela aí...

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, eurico, q o alberto caeiro dos trópicos, com sua poética de adâmico barro, molda o tom da modulação do timbre da respiração, que é essa, ainda q asmática, que tensiona com o impossível e com a imaginação utópica, quando a burrice universal, também chamada de globalização, imperial, não venha mais com arumentos tão simplório, pra não dizer cínico, pra não dizer hipócrito, pra não dizer burro, sobre a diferença entre capitalismo e comunismo, alegando naturais conspirações, como se.
saudações
achei q estivesse aborrecido comigo, por ter sumido
luis de la mancha

Dauri Batisti disse...

Pois é Eurico, dizem que o Manoel de Barros é o Guimarães da poesia.

Quer dizer que ele é um não-poeta?

Bem, isso não sei. Só sei que ele é grande.

Um abraço.

lula eurico disse...

Luís, meu amigo,
que é isso de aborrecido? Qual nada!
Vou te contar por email como anda a minha vida e entenderás o meu sumiço heheheh

lula eurico disse...

Dauri, releia isso:

"Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição do poeta."
*****************************
Creio que a busca da definição do que vem a ser um não-poeta é algo de que me sirvo, presentemente, para compreender esse fenômeno, a Poesia.
Tenho ocupado minha mente com isso. E tem me feito bem pensar sobre a poética dos não-poetas. Bem, respondendo à tua pergunta, dentro daquilo que está tomando corpo em minha maneira de ver o não-poeta, Manoel de Barros se apresenta como um deles, sim, senhor. Ele não diz palavras, e sim coisas... como tu, amigo, e as apresenta numa epifania de imagens e de lirismo, que nos entontece. Diante do que ele escreve fico feito os meninos do Brejo da Cruz, do Chico Buarque, a me alimentar de luz... hehehe

Abraço fraterno.

Dauri Batisti disse...

Mas Amigo Eurico,

essa expressão não-poeta inventei sem pretensão nenhuma. Nem sei bem o que significa.

Sei que é uma negação, ou uma pretensão de negação, uma afirmação do fazer do viver
cada dia como uma obra (de arte?).

Inclusive, estes "poeminhas" que escrevo agora começam no titubeio de dizer, não dizer, não saber o que dizer, não saber se dizer vai valer alguma coisa,

mas dizer... afinal, apenas para adentrar mais no presente, no momento, no dia de hoje.

Um abraço.

Elcio Tuiribepi disse...

OLá Eurico, se você gostou de reler este poema, eu afirmo que me engravidei-me, o "Me" duas vezes é para pode expressar a força com que ele empoemou-me...adorei esta expressão...bela escolha...
Um abraço na alma...e a saúde tudo ok? Espero que sim, aliás, tenho certeza que está bem, não me desminta por favor...rsrs
Valeu...teu post é um presente...

Andreia Alves disse...

Olá querido! Estava com saudades de teus textos tão lindos e tocantes. Desculpe-me a ausência, ando em época de provas e participando de umas blogagens coletivas que me ocupam mais ainda o pouco tempo que tenho. As vezes não dou conta de visitar todos, me atrapalho mesmo!
Beijos na alma, fim de semana eu volto!!!

lula eurico disse...

Élcio,
fui lá no Verseiro e comentei. Mas aqui te digo, a saúde está voltando com muita força! E a primavera, que não se percebe bem cá no nordeste, floresce dentro de mim!

Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Andreia, menina bonitas, mulher guerreira,
fui até o teu Devaneios e li tua história de luta e de vitória. Parabéns.

Qto a vc demorar a vir até aqui, vou citar um livro para o qual muitos torcem o nariz. A maioria não o leu pq era muito citado pelas 'miss Brasil", nos anos 60/70. Bem, há o que os leram com o olhar de adulto, e não captaram a sua mensagem.
Bem, a Raposa, em diálogo cheio de ternura, dizia ao Pequeno Príncipe (e eu digo aos blogueiros e blogueiras amigos, que me visitam):

"Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e descobrirei o preço da felicidade!"

Abraço fra/terno, Andreia.