Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quarta-feira, agosto 12, 2009

Caeiro: um Não-poeta (inquietações de convalescente)





























Encafifa-me o
Dauri Batistti, ao declarar-se não-poeta. E, durante a convalescença dessa "exérese em meu corpo físico", que mal me permite teclar, voltei-me à leitura dos mestres, a ver se entendia esse insólito e ambíguo ser, que faz poesia e não se admite poeta, e me deixa atônito, pelo fato de ser exatamente o que nega ser: um Poeta.
Essas inquietações sempre me levam a reler Fernando Pessoa, o Outro, esse belíssimo e saboroso ensaio de hermenêutica cultural, escrito em 1965, por G. M. Kujawski, que nos apresenta, muito orteguianamente, "o aprofundamento do nexo entre Pessoa e a essência da Poesia".
Dentre as coisas que diz Kujawski sobre os heterônimos pessoanos, algo sobre o Alberto Caeiro me chamou a atenção:

"(...) Caeiro reconquistou para Pessoa o contacto direto com as coisas, com a patência das coisas físicas e sensíveis (...)" p. 58.

Ah, como necessito desse abraço caloroso com as coisas, dessa estesia com a realidade tal como a encontro! Eu, que me julgo conceitualista demais em poesia, coisa que me faz mais pensador do que poeta, o que, de certo modo, turva a minha visão poética das coisas, descubro agora, relendo Caeiro, que sou mesmo um poeta míope, quase cego, cujo lirismo, excessivamente reflexivo, não passa de uma obssessão pelas idéias traduzidas em versos. Talvez seja isso o que distingue um Poeta de um Não -poeta. O poeta ocupa-se com as palavras, como se estivesse divorciado das coisas, enquanto o Não-poeta toca-as com as pupilas. O seu olhar as recolhe, como a peixes numa rede, e as põe, vivas, nos versos. Creio que agora compreendo melhor a afirmação dauriniana de não ser poeta. Dauri não nos apresenta palavras, mas coisas vivas, que latejam diante de quem as , digo, de quem as , o que, no fundo, vem a ser a mesma coisa, pois a poesia dauriniana é apenas a sua maneira de olhar as coisas. E quão poético é esse olhar!

Mas, como fazer poesia sem conceitos, sem idéias? pergunto-me, angustiado, por não saber olhar as coisas sem nelas pensar.
Responde-nos Caeiro, à página 60, da obra citada:

"a poesia faz-se com palavras, sim. Mas a poesia não são palavras. Também uma laranja faz-se com água, e não é água; é laranja.

Encontrei então, no
Jornal de Poesia, do amigo Soares Feitosa, essa pérola do Alberto Caeiro, que vale por mil explicações que eu, porventura, intentasse expressar, nesse, já tão longo, exórdio, em que busco alcançar o sentido do que vem a ser um Não-poeta:



A espantosa realidade das coisas (7-11-1915)


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.


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Fonte da imagem:

Fernando Pessoa



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18 comentários:

Ilaine disse...

Eurico, maravilhoso saber que você está de volta...Ouço Brahms com você e te imagino no teclado, feito um viciado... Viciado em versos... Que os poemas brotem.

Inquietações! Estas resultaram num post muito interessante. Caeiro - quem dera pensar menos como ele, assim pelo menos protegeria os meus olhos... Pensar menos e escrever mais.

"Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido."

Abraço, querido amigo! Espero que logo, logo estejas de todo restabelecido.

lula eurico disse...

Grato, amiga. Estarei sim. Se Deus permitir.

Paula Barros disse...

Eurico, a letra do texto acima está pequenina demais.

"Dauri não nos apresenta palavras, mas coisas vivas, que latejam diante de quem as vê, digo, de quem as lê, o que, no fundo, vem a ser a mesma coisa, pois a poesia dauriniana é apenas a sua maneira de olhar as coisas. E quão poético é esse olhar!"

Quando você busca nos mestres explicação para o que lhe inquieta, busco dentro de mim esse sentir. Sinto viva as palavras de Dauri percorrendo o sangue, que se torna mais sangue.

Elas tem uma vibração própria.

Muito bom, muito bom.

abraços

lula eurico disse...

Ah, Ilaine. Resolvi ouvir Mozart, por tua causa. Mas não é a Serenata nº 13, e, sim, a de nº 10.
A peça final, o adagio.

Abraço fra/terno.

Max Coutinho disse...

Olá Lula,

Eis porque não escrevo poesia: é-me impossível não pensar. E como penso e analiso imenso, os meus textos acabam todos em prosa.

Não consigo deixar-me levar pela emoção e permitir que as palavras fluam da pena para o papel baseadas nessa emoção: a razão não mo permite.

Mas admiro imenso quem o consiga fazer: é um dom de Deus :)!

Um abraço

Memória de Elefante disse...

Eurico!
O poeta escreve o que vê e por vezes a dor é tanta que melhor é não pensar e escrever.
Gostei do que encontrei aqui, muita sensiblidade e arte!
Abraço

Jens disse...

Oi Eurico.
Bom saber que você está de volta e refletindo sobre o teu ofício. Geralmente as angústias dos poetas resultam em pérolas para os leitores.
Um abraço.
Pra cima com a viga!

lula eurico disse...

Paulinha,
aumentei o tamanho das letras. Mas não é a apreensão dos poemas do Dauri que me levou à releitura dos meus mestres. O que me faz pensar e repensar é a atitude de não-poeta daquele amigo, que considero um grande Poeta.
Gosto de pensar sobre isso, sobre a matéria na qual trabalho. É o meu mister. É a minha matéria prima. Se um pedreiro não se atualizasse, estaria, por exemplo, fixando pisos com cimento, quando a tecnologia já inventou a argamassa. Por isso, quando algo me instiga nessa área, e o Dauri sempre faz isso, tal a qualidade do que escreve, eu corro a estudar. Afinal sou um "bibliodidata" como costuma dizer o meu compadre Carlinhos, lá do Sítio d'Olinda. rsrsrs

Abraço fra/terno

lula eurico disse...

Max,
embora seja tênue a linha entre uma e outra, vc tem toda razão. Porém é o Fernando Pessoa, ele mesmo, quem nos fala de um sentir/pensando, de um ritmo internalizado e de outras coisas em seu Páginas de Doutrina Estética, livro esgotado, em que o Mestre Pessoa nos dá lições profundas sobre as ligações entre a prosa e a poesia.

Abraço fra/terno.

lula eurico disse...

Jens, amigo. Grato pelas palavras. O pós-cirurgico é um tempo de dores e de paciência. Mas vai passar...

Abração.

Éverton Vidal disse...

Eurico,

Cada vez que venho aqui é como se uma janela se abrisse. É como se fosse uma aula, mas nao qualquer aula, mas dessas em que professor e aluno se confundem e pensam juntos.

Eu gosto demais de Caeiro. E já havia pesquisado bastante sobre ele. Mas nao sabia sobre o ensaio de G. M. Kujawski E com esta postagem também vi algo que eu nao tinha visto.

Um abraço e melhoras!
Inté!

lula eurico disse...

Bem, Éverton,

Nessa aula, eu sou o aluno e
o Kujawski é o mestre. Ele tem outras obras sobre Pessoa, que creio devem estar esgotadas: "Pessoa, o Intransitivo", de 1959; em 1962, "Fernando Pessoa, o Uno e o Múltiplo", e este que cito na postagem, que veio a público em 1965, depois do autor ter enveredado pelos estudos de José Ortega y Gasset, que intitulou "Fernando Pessoa, o outro".

Bem, fico nesses, posto que nesse assunto o escritor português Agostinho da Silva é, creio eu, a maior autoridade, com o seu "Um Fernando Pessoa".
Como sou "rato de biblioteca", te aconselho a procurar numa aí da faculdade, pois a maioria dos livros tem edição esgotada.

Abraço fraterno.

Dauri Batisti disse...

Eurico,

passo por aqui, mas nem sempre comento. Tomei um susto quando vi este post. Não sei o que dizer. A poesia é algo que não sei explicar, é algo bom, algo mais. O poema é a sombra.

Dizer-se não-poeta é dizer uma impossibilidade - não sei exatamente qual. Talvez impossibilidade de apreender este pássaro que tem asas maiores do que as da imaginação. Também não sei se é isso o que me faz afirmar que sou um não-poeta.

Quem sabe seja por encarar a escrita de poemas como um modo de fazer Imaginação Ativa, uma técnica Junguiana de dialogar com outras façes do próprio rosto.

Por ai... sei lá...

Obrigado por me fazer pensar.

Um abraço.

lula eurico disse...

Dauri,
quem fica grato sou, somos nós, os teus leitores. E agora que tenho indícios do que vem a ser o não-poeta, sabedor que "a flor é um sol, e o poema é sombra", passo a te ler com mais fruição e curiosidade. Eriges uma poética, a partir de uma poesia de não-poeta.
E é essa poética que leio, para além do que está escrito nos teus textos. Esse diálogo só me enriquece. Pois de nosso processo criativo se pode falar. A poesia, só lendo lá no Essa Palavra.

Abraçamigo e fraterno.

Sueli Maia (Mai) disse...

Por hoje, Eurico e Dauri, eu apenas aplaudo, de pé, a emoção dos homens.
E beijo e abraço amigos que sinto, são HOMENSde um bem desmesurado.
Abraçamigo e,

feliz aniversário.
ainda e sempre...

lula eurico disse...

Mai, amiga querida,
não suporto mais viver sem vcs. rsrsrs
A cirurgia vai doer, mas eu vou vir aqui, sim. rsrsrsrs

Beijo d'amigo.

Paula Barros disse...

Eurico roubei as palavras de Dauri, sem permissão, sua, nem dele. Coloquei aqui.
http://diariovirtualmeu.blogspot.com/

Você vai se operar? Vou ligar.

abraços, boa sorte

lula eurico disse...

Já operei, Paulinha. Tirei algo indesejável do meu corpo, um nódulo estranho e enxerido, que se alojou em mim, sem ser convidado rsrsrs

Li o teu Diário Virtual e gostei da idéia. Fizeste bem em guardar as palavras do Dauri. Me fizeste lembrar da cunhada de Van Gogh, que guardou pequenas obras pintadas pelo cunhado meio maluco, quadros aparentemente sem valor, e que, anos depois, passariam a ter um valor inestimável. As palavras do Dauri são pérolas escondidas em um blogue. Fizeste bem em guardar esse comentário do Não-poeta.

Abraço fra/terno, Paulinha.