Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, julho 23, 2009

Peso aos habitantes do Recife (antipoema trágico)



















Aqui mataram mais uma criança





Parte I (para ser lida aos berros)

Tudo é símbolo para o poeta.
Mas nem tudo é poesia.
Fotografar com palavras
A imundície verbal
Que emana da violência é arte?
Creio que nem os realistas soviéticos
Usaram desse grosseiro linguajar (poético?).


Contudo, se o que se espera de um vate
É o vaticínio,
Hoje vos apresento uma profecia pós-moderna,
cujas vísceras estão expostas nos jornais de ontem:

“Mais de 33 mil adolescentes
serão assassinados entre 2006 e 2012,
prevê o Indicador de Homicídios na Adolescência (IHA),
divulgado ontem pelo Governo Federal,
Unicef e Observatório de Favelas.
As cidades do Recife (PE) e Maceió (AL)
estão no topo da lista dos piores números
entre as capitais,
com 6 mortes para cada mil adolescentes.”

Ó civilização necrófila e decadente!
Até quando pseudo-intelectuais
Venderão milhares de livros com capas coloridas,
Como se descrever a ignominiosa morte
De jovens fosse a última moda em arte?
Eu chamaria isso de sado-masoquismo.
Arre!
Afagar a pereba com incenso e mirra
Não é cura para a gangrena.
Ficar a olhar para o lixo que bóia sobre
o Rio Capibaribe
Não é defender suas águas putrefatas,
em que deslizam os dejetos que nós mesmos lançamos.
Contar historietas (literárias) de assaltos em ônibus;
Documentários, ditos artísticos, de milícias do apito,
de meninas que se prostituem;
fazer kitsch com uma tropa escatológica,
e di/vulgar tudo isso em festivais com gente perfumada e feliz:
É como presenciar, indiferente,
um corpo que desaba do alto de um edifício
E seguir, com olhar abúlico, a morte certa
à velocidade de 10 m/s ao quadrado.


Estou em crise.
E crise profunda.
Em crise por uma sociedade nauseabunda
Que faz saraus etílicos
E vernissages com doces e salgados
Para expor a banalização da morte
E a nossa própria indiferença diante de tudo.

Aviso aos navegantes:
O mar é alto,
O barco está a pique e nós com ele.
Não há sequer um escaler para salvar mulheres e crianças!


Parte II (leitura silenciosa)

Se um corpo cai no mar
(E tudo aqui é símbolo)
Quem sabe mergulhar
Que salte e vá salvar
a vida que se afoga...

Assim a arte, essa sonda submarinha,
Essa antena profética,
Esse radar da intuição
Há de vislumbrar
Na noite escura dos tempos
O archote que perdemos
A bruxuleante luz dos áugures.

O que fizemos a nós?
Em que matrizes míticas
nos fundamos?
De que barro,
Nos geramos?

Que os bardos vaticinem
De que Éden nos perdemos.

Eis a única poética possível,
num mundo que estertora
Com o desamor no âmago.

...E alguns ainda me perguntam
Por que mito?
Por que fraternidade?

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Fonte da imagem:
Perícia de criança assassinada no Coque - Recife-PE

Leiam também a Resenha Poética, no Sítio d'Olinda
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11 comentários:

Canto da Boca disse...

Essa estetica da violencia que galopa assombrosamente rumo ao apocalipse, e que esparge em todos os muros, e caminhos os rios de sangue e lagrimas choradas sobretudo pelas maes, irmas e pessoas humanas, que sao tao vitimas quanto os que tem suas vidas ceifadas imediatamente, e as tantas outras vidas que se perdem a conta/gotas, de forma homeopatica, as familias que se e estao cada vez mais desestruturadas.. O que eu lamento e choro eh que as vitimas sao todas desassistidas desse poder que se reveste de guardiao dos povos de todos os lugares, e nao passam de algozes carrascos dessa trupe mambembe, desse faminto Exercito de Brancaleone, desses saltimbancos da vida. Parece que hoje, por mais que a esperanca seja necessaria, ela estah escondida em algum lugar, envergonhada, desse lamacal feito de barro e sangue dos inocentes que jah estao carimbados para a morte, antes mesmo de nascerem para a vida de cao que terao.

Estou com o teclado desconfigurado, igualmente como o mundo. Bah, quem se importa com isso... E dizemo/nos civilizados, a barbarie comendo solta pelos quatro cantos do mundo...
Deixe eu ir caminhar, Compadre Eurico, que essa poesia me sangrou.

Anônimo disse...

E sabe o que é pior?
Pelo resultado da pesquisa a maioria destes jovens que vão morrer são negros. Estava comentando a notícia com meus colegas professores e sabe qual a reação: total indiferença. Como se eles e seus filhos também não vivessem neste mundo.
Ainda bem que a gente sempre encontra quem fica indignado também.
Abrs querido.

lula eurico disse...

Boca, amiga,
precisamos caminhar, precisamos respirar, precisamos estar fortalecidos para a luta.
Somo uma minoria que resiste.
E não podemos, nem devemos perder a esperança.

Abraço fraterno e paz!

lula eurico disse...

É Fátima,
parece que a indiferença é um mecanismo de defesa, uma síndrome do avestruz, uma fuga. Mas, convenhamos, quem resiste a pensar nisso o tempo todo, né?
O mecanismo é o mesmo que nos faz esquecer que somos mortais, finitos.
Mas a natureza tem limites, e esses limites nos vão ensinar, duramente, dolorosamente, o caminho que deveríamos ter tomado há uns 100 anos atrás, pelo menos.

Abraço fraterno e muita paz!

Dora disse...

Ô amigo Eurico...Já berrei seu estertorante desabafo ante os horrores da maldade humana.
E já sussurrei, lendo as reflexões sobre as causas profundas, as raízes desse "barro" que nos molda.
E concluí, sozinha, que ninguém, nem a Filosofia, nem a Teologia, nem a Ciência têm respostas para nós. Minha esperança é a Arte, e nela, a Poesia "de vates" que transcendem, muitas vezes, as buscas mundanas com suas vozes "intuitivas" e proféticas. Incluo você aí. É uma voz e tanto a sua!
Beijos.
Dora

lula eurico disse...

Cheguei da rua agora, meninas. São 00:28h. Amanhã volto aqui.

zhubenedicty disse...

É. FOI. Nunca mais. Nossas mãos para sempre pequenas não seguram um mundo tão escravo de transgressões. Bebo desse pensamento - somos feitos de uma carne muito passageira, de uma ignorância profunda e mãos, para sempre pequenas. Abs.

Zhubenedicty disse...

É. FOI. Nunca mais. Nossas mãos para sempre pequenas não seguram um mundo tão escravo de transgressões. Bebo desse pensamento - somos feitos de uma carne muito passageira, de uma ignorância profunda e mãos, para sempre pequenas

lula eurico disse...

Amigos e amigas blogueiras, apresento-lhes Malu Zhubenedicty, uma jovem poeta, cujos versos, acutíssimos espinhos num roseiral de lucidez , podem fazer sangrar, mas deixam a impressão de que nem tudo está perdido. O ser humano ainda tem salvação.
Salve, Malu!
Cliquem aí no sobrenome dela e conheçam essa menina prodigiosa.

Éverton Vidal Azevedo disse...

É um poema que nos faz querer fazer alguma coisa, qualquer coisa que nao seja o sado-masoquismo ou a masturbaçao-"artística" de pseudo-intelectuais.

A gente se engasga mesmo. Mas estamos aqui pra fazer diferença. Sal e luz do mundo.

lula eurico disse...

E como é difícil ser luz e sal. Estamos todos, de uma forma ou de outra, imersos nessa conjuntura. Como ficar imune no ventre da baleia, sem se contaminar pelas vísceras do cetáceo?

Abraço fraterno.