Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, junho 12, 2009

DOR, AQUÉM DO BOJADOR (um clamor no Quinto Império)

























I – A Travessia


Um estranho olhar crepuscular,
Volveu-se àquele antigo novo mundo.
E fez-se o homem ao mar,
Ao imenso mar,
à luz azul, índigo azul, de um céu profundo,

O leme aponta a rota pr’acolá...
O vento empuxa as velas,
Um zéfiro insufla o ar.

Se há algum nexo no mar,
Ante as borrascas,
Se essa nau menear nas vagas altas
E a saudade singrar pr’além da dor...
Todo o nexo que há,
deixo aos cartógrafos,
aos nautas que souberam dos peligros
E aos que avançaram empós
do Bojador.















II – A Chegada


Sopram frautas na floresta,
Mas, não há faunos por cá?
‘Stão nuas as rap’rigas,
Com as desonras à mostra
Mas, ninfas, tampouco, as há.

Há iaras, sete-estrêlos,
Pai-da-mata, m’boitatá,
Rubra tinta da madeira
Caju, fruta-guaraná.
Papagaios, capivaras,
Boas eiras, águas claras;
em se lavrando, tudo dá.






















III – A Invasão


Fincaram u’a cruz bem alta...

Se era do Cristo ou de Malta,
Por que trazia a má sorte,
Doenças terríveis, morte,
Se era do bem o fanal?

Será que valeu a pena,
Ter cruzado o Bojador?
Valeu o imenso pecado,
Que tiveste perdoado,
Abaixo do Equador?

Nem tudo valeu a pena,
Pois tu'alma, tão pequena,
Nos causou tão grande mal.
E te devolvo a pergunta,
Tua mística pergunta,
Antiqüíssima e ancestral:

Quantas lágrimas foram nossas
Pra fazer teu mar de sal?

Fecha a porta desses mares!
Jamais navegue essa nau.
Tua flâmula é da vergonha,
Genocida e anti-vital.

E em que hora tão medonha nos tornamos Portugal.



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Imagens do Google.


Fonte da mid:
http://www.saturn-soft.net/Music/Music1/MIDI/Classic2/DebussyFaune.mid



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14 comentários:

Éverton Vidal disse...

Sim, aqui ainda não é madrugada rs. Ainda estou on, ainda bem que você me avisou.

E fiquei boquiaberto. O vocabulário, a conversa intertextual (com as imagens e outros textos que nos são conhecidos) e principalmente com a atualidade do poema. Gostei demais.

lula eurico disse...

Caro Éverton, poeta madrugador,

Fiquei preocupado com este poema. A série passa pelo negros, índios e brancos. Mas não queria passar a idéia maniqueísta de bem e mal. Até pq o texto se ergue sobre língua, herdeira daquela que veio do mar, nossos costumes, nossa arquitetura, nossos festejos, como esses juninos, ou seja, boa parte do que somos de bom, vem dos brancos. Esse encontro foi deveras traumático. No entanto, nutro a esperança de um quinto império, lusófono e fraterno. E esse mito também é português. Parece uma contradição, né? Mas o eu-lírico do poema é ameríndio.

Abraço fraterno.

Dauri Batisti disse...

Concordo com o Everton: gostei demais. Especialmente a terceira parte fiquei pensando como ficaria com expressões em tupi, visto que é o reclame dos daqui.

Tu lapidas os poemas. São mais do que poemas.

UM abraço.

lula eurico disse...

P.S.:

Éverton, ando com essa mania de comentar meus poemas. Quando faço isso é porque o texto está incompleto. Falta dizer algo sobre o tema. Em breve faço a louvação aos lusos,contrariando esse dor, além do Bojador, se já não a fiz na série Mátria.

lula eurico disse...

Dauri, amigo velho. Sempre é bom te ver. Leia o Éverton, poeta jovem e vigoroso. Como é bom ter essa rede! Esse poema podia ser mais longo. Faltou-me o fÔlego. Fiz, ontem, em pouco tempo. Precisava amadurecer. Quem sabe o tupi guarani apareça em uma versão posterior. Esse está me parecendo um esboço. rsrsrs
A pressa de blogar reduz os poemas.

Abraçamigo e fraterno.

Dauri Batisti disse...

Eurico,

o Germano me ligou, desde que nos conhecemos, ao Jack Kerouac. Percebeu semelhanças... não sei exatamente quais. Talvez por meus escritos serem sempre "buscas". Fiquei feliz com a menção dele pois o Jack kerouac é importante para mim. Para ele sempre volto, especialmente quando sinto que estou perdendo a ingenuidade.
Abraço.

lula eurico disse...

Dauri,
foi bom esse comentário, pois dei uma lida sobre o Kerouac, e fiquei impressionado, pois convivi com essa geração beat, mesmo sendo mais novo um pouco, e vi como eles estavam realmente com o pé na estrada. Muito boa essa referencia.

Sueli Maia (Mai) disse...

Eu fico... Me liquidifico... Sou líquida dacabeça aos pés porque aqui eu viajo (nem é comum, hein?) no tempo, no espaço, na história e nos 'pedacinhos não contados' porque se escreves algo assim, em 'pouco tempo', Eurico amigo, o que não teríamos, então se te debruçasses a escrever o que tens ai em teu coração?!

(suspiro e tomo fôlego)
Estou ouvindo a trilha de Vangelis no filme que retrata em Colombo - 1492 - 'a conquista do paraíso'...
Ai venho aqui e tenho 'O Brasil' e Debussy...
É muito...Tu sabes o quanto eu sou 'fuleira' prá chorar...
Abraçamigo, Eurico.
Fica bem.
Carinho,
Mai

Jacinta Dantas disse...

Eurico, meu declarado amigo. Mais um de seus belos e instigantes poema. Na leitura, juntando as imagens que tão bem dialogam com o texto, visualizo nossa condição de explorados e exploradores enraizada no nosso caminhar. Bonito demais esse seu jeito de transformar tamanho evento nesses versos que retratam o nosso grito.
Beijo

lula eurico disse...

Primeiro, a Jaci, que faz tempo não vinha aqui:
Sim, Jaci, o tema é instigante, doloroso e cheio de paradoxos. A ti, em especial, te digo que não entendo esses momentos de uma igreja que tem Leonardo Boff e Dom Hélder, que tem Irmã Dulce e Madre Teresa de Calcutá. Minto. Eu compreendo a humanidade que contextualiza todo empreendimento humano e aquele grandioso momento da história, que apesar das marchas e contra-marchas vai avançando. Porém, Jaci, clamo contra as consequencias funestas da falta total de amor daqueles que chegaram empunhando a cruz de malta. Nunca é tarde para um clamor. Estamos na eternidade.

lula eurico disse...

Mai, querida amiga d'infância,
o Debussy devo a vc. Eu o encontrei lá no teu blogue. E fui buscar logo o Prelúdio dedicado ao Mallarmé. É mole?
(Esse é mole é bem carioca. rsrsrs)
Mas exageras na tua avaliação do que poderia ser um poema mais longo. Eu poderia destruir essa pequena peça. Tive medo e fiz 3 atos. E 3 atos-alusão, escorços, perspectivas do que se poderia avistar. Creio que assim forço o leitor a fazer suas ilações.

eita! Cá estou eu a comentar o processo criativo. Isso é tarefa de meu compadre Carlinhos. rsrsrs

Abraçamigo e fraterno.

Ilaine disse...

Eurico!

Estou aqui lendo e relendo DOR, AQUÉM DO BOJADOR. Pois, lembras do que te escrevi na mensagem? Teus escritos são especiais,nada comuns. Eis um poema que conta a história, a nossa herança em três partes: travessia, chegada e a invasão. Há aqui uma riqueza de figuras num texto de um vocabulário esplêndido. Uma viagem, uma profunda descrição.

É um poema lindo, uma prece.
Estou encantada.
Beijo

lula eurico disse...

Grato, Ilaine. Relendo agora, acho que cometi duas heresias. Uma contra a poesia de Pessoa, e outra contra a Igreja (de 1500 d. C.)
Que o bom Deus me perdoe!
E que os literatos não me tenham por atrevido. Afinal a pergunta é do Pessoa, em Mensagem. Mas, me defendo dizendo que a pergunta é de Portugal, do europeu daquele momento histórico. Eis o motivo de eu ter retrucado com meus versos.

Abraçamigo.
creio que esse poema está inacabado rsrsrs

Rejane Martins disse...

Perguntas devolvidas, cartógrafos, tudo para além do mais temido e a constelação: poesia guaraetá.
Infinitamente bonita a escrita que se vê por aqui, Eurico.