Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

terça-feira, junho 30, 2009

O UNICÓRNIO (uma poética da alusão)





















Há uma grande diferença se fala um deus ou um herói;
se um velho amadurecido ou um jovem impetuoso na flor da idade;
se uma matrona autoritária ou uma ama delicada;
se um mercador errante ou um lavrador de pequeno campo fértil;
se um colco ou um assírio;
se um homem educado em Tebas ou em Argos.
................................................................HORÁCIO, Ars Poetica.


No princípio era um germe, mas o germe fez-se Ursprache...

E o Unicórnio vos espreita nessas páginas
Que escondem a clave do ignoto:

Destroços submersos
Dialética das léguas submarinhas
Luzes de um tambor primordial.

O Unicórnio roça as costas nas palavras
Larvas
Lavas
Lavras
E anuncia o segredo,
O sagrado segredo das línguas
:
Hlör u fang axaxaxas mlö

Or
:
Upa trás perfluyue lunó.

Ora, argumentaríeis,
Não há Unicórnios
no mundo real.

Logo, eu aduziria:
No entanto,
Sua clina tilinta aliterante,
Salta
Silva
Soletra a ventania nas narinas
Roça o dorso prateado nas colunas
Que sustentam as verdades compossíveis,
Relincha entre as camadas geológicas
Da memória volátil desses étimos.
Suas palavras larvas lavas lavras ruflam asas,
Quais páginas viradas levemente.

O Unicórnio roça as costas invisíveis
Nos umbrais do cinema transcendente
...


Eurico
(metapoema lúdico, que alude à abdução, ou introvisão,
inferidas, transversalmente, das idéias de Charles Sanders Peirce. rsrs)



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Poema Espelhado (um tributo tardio a Leila Diniz )




imagens do google

(
Ei-la!
Feminina pulsação da liberdade.
Um olhar dentro dos olhos do futuro.
Lá onde não mais existe
o imaginário
peso da culpa original.

Nem bela
Nem adormecida
Corre nos campos
Grita nas praças
Luta nas fábricas

Ei-la,
desfazendo mitos e lendas.
Nem tão branca
Nem tão neve.
Sem maçãs a dar
Nem a receber.

Ei-la!
Nos encontros
Nas conversas
Nas alcovas,
Ei-la, afinal.
Um jeito livre de ser.
Orgástica,
luminosa,
natural:
eis a nova mulher,
a mirar-se em outro espelho!
)


(Dedicado a todas as mulheres desse novo tempo, que aqui se mirarem.)

***

Em tempo:

todo dia é dia da nova mulher.


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Fonte da mid:
Suíte Retratos Chiquinha Gonzaga – Marco de Pinna

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sexta-feira, junho 26, 2009

Presença





























Como opor ao pano de fundo da opaca eternidade,
A brevidade translúcida
Da vida?
E o que irá acontecer no próximo instante
Da minha,
Da tua,
Da nossa existência?

Isso importa mesmo saber?


Aconselho-te a soltar girândolas.
E a sapatear pela rua.
Deixar que o ritmo desse improviso,
Mais do que o das sístoles e diástoles,
Seja, em ti, um ondular dionisíaco e profundo.

Entre um passo e outro dessa dança cordial,
Habita, intraduzível, a vida.
Ela gira
E salta
E canta em ti.
És a agitação pulsante do divino sobre as águas.
És o fôlego no barro dessas moléculas.
És o fogo!
Só tu o podes sentir.
És essa sensação do apodítico.
Essa certeza túpida da tua própria respiração.
Essa vertigem de Ser.

Então, canta,
No âmbito estremecido desse instante!
Canta
E esquece a eternidade.
Canta e dança
E aquece-te à fogueira fugaz dessa presença:

A tua presença.



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quinta-feira, junho 25, 2009

Beleza é fundamental, mas o que é a Beleza?

Procurava uma midi voice do Dominguinhos no Google, quando me deparei com essa postagem do Viver é Afinar o Instrumento, da Fátima Maria, Historiadora de Itabira, que copiei por achar muito oportuna. Como meu blogue se interessa pelos mitos, e a publicidade cria muitos, pra bem ou pra mal, eis aqui uma oportunidade de desmistificar uma mensagem publicitária da Runner, no mínimo equivocada, se não, preconceituosa e maldosa. É por essas e outras que temos jovens e adultos depressivos e/ou anoréxicos. Temos filhos e filhas e precisamos mudar essa mentalidade. Essa forma de tratar a publicidade é fruta do desamor que reina na pós-modernidade. Leiam o que disse a Fátima, e depois leiam o texto integral lá no Viver é Afinar o Instrumento:.





"Ontem vi um outdoor da Runner, com a foto de uma moça escultural de biquíni e a frase:

"Neste verão, você quer ser sereia ou baleia"

RESPONDO:

AS BALEIAS

Baleias sempre estão cercadas de amigos.
Baleias têm vida sexual ativa, engravidam e têm filhotinhos fofos.
Baleias amamentam.
Baleias nadam por aí, cortando os mares e conhecendo lugares legais como as banquisas de gelo da Antártida e os recifes de coral da Polinésia.
Baleias têm amigos golfinhos.
Baleias comem camarão à beça.
Baleias esguicham água e brincam muito.
Baleias cantam muito bem e têm até CDs gravados.
Baleias são enormes e quase não têm predadores naturais.
Baleias são bem resolvidas, lindas e amadas.


AS SEREIAS

Sereias não existem.
Se existissem viveriam em crise existencial:"- Sou um peixe ou um ser humano?
"Não têm filhos, pois matam os homens que se encantam com sua beleza...
São lindas... mas tristes e sempre solitárias...

Runner, querida, prefiro ser baleia!"

...........................Fatima Maria é Historiadora em Itabira-MG.

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Pós-escrito: (em 26/06/09)
Deixo no ar a indagação do título desta postagem,
para que ela cumpra, em cada um de nós, a função de trazer à luz o que milênios de beleza, sob cânones gregos, têm feito com nossa cabeça.
Essa é a única beleza possível? E não falo aqui de beleza interior. Refiro-me à beleza do corpo das pessoas comuns e fora dos cânones helênicos.
Beleza é fundamental, disse o Vinícius, mas de que beleza ele falava? Ou seja, afinal, o que é a Beleza?

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Para ler a postagem original na íntegra, eis a fonte de onde copiei os poemas:

http://vivereafinaroinstrumento.blogspot.com/2009_04_01_archive.html

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quarta-feira, junho 24, 2009

Ciranda Cósmica



“Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo,
daqueles que velam pela alegria do mundo. “

.............................Caetano Veloso




Há uma fogueira ancestral, no meio da praça!
E dança em círculo,
uma gente jubilosa.

No céu, giram miríades de astros sorridentes.

Deus vela pela alegria do efêmero,
e pela festa ao instante que passa...

Sua Mão cuida das nossas órbitas.
Nele vivemos, nos movemos e existimos...
Nele, o infindável movimento circular
Giremos, pois, nessa ciranda.
Dancemos ao Eterno fluir.

Assim seja sempre!
....
.




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Eurico


24/06/2009


(Ainda energizado pela deliciosa ciranda, de ontem à noite, na Praça da Igreja da Várzea.)


Para ver mais fotos da celebração clique na imagem:



Estarei entre os brincantes, sambando côco, de boina, calça marrom e camisa vermelha, nas cores do santo, ou do orixá, como queiram, sempre forrozando com a minha florzinha do Capibaribe:




Mais fotos da festa, clique aqui: http://floresdocapibaribe.blogspot.com/


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terça-feira, junho 23, 2009

Acorda Povo: Viva São João do Carneirinho!






















O comércio fecha as portas.
O povo abstém-se de atividades seculares.
É feriadão.
Tocam-se instrumentos de sopro,
matam-se cabras e carneiros e se faz oferenda de comedorias a Deus.
Nas casas ricas se fazem banquetes.
Essa festança se dá todos os meses do ano.
Mas não se trata de ritual de umbanda, nem de candomblé ou jurema.
Se assim fosse, sei que muitos torceriam os narizes hipócritas. rsrsrs
Mas esse cerimonial religioso era hebreu, o “Festival da Lua Nova”
que ocorria no início de cada mês.
(Vide, Nm 28:11 e 14; Ez 46:1-8, Nm 10:10; 28:11-15;
Sl 81:3; Am 8:5;1Sm 20:5, 18, 24, 27 e 34).

A própria festa de Pentecostes era também
uma antiga festa da colheita e pré-cristã.
Que diriam os cristãos de hoje se soubessem
Que os mais antigos costumavam freqüentar festivais da lua nova...
São Paulo repreendeu os colossenses justamente pela discriminação dos costumes da tradição popular daquela região:

"Portanto, ninguém vos julgue
por causa de comida e bebida,
ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados,
porque tudo isso tem sido sombra
das cousas que haviam de vir;
porém o corpo é de Cristo."
Colossenses 2:16-17

Por que falo disso, aqui e agora?

É que ontem fomos a um festival, que reúne todas as bandeiras de São João do Carneirinho, num sincretismo carnavalizado e feérico.
O cortejo percorre as ruas do Recife, acompanhado por orquestras de metal, sambadas de côco, muito forró e até mesmo, o frevo, até o Pátio de São Pedro.
Eis um momento numinoso!
Eis uma festa pagã e pré-cristã!
Mas, ninguém vos julgue..., dizia São Paulo.
Eram também cristãos, os que ali dançavam e cantavam,
naquela imensa festa sazonal, que celebra a chuva, a colheita do milho e o santo, primo de Jesus Cristo.


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Hoje o côco vai ser de roda!
É o Acorda Povo, no bairro da Várzea.
E eu estarei lá! Com chuva e tudo!
Se Deus permitir!

Viva São João!
Viva Deus, que pequeno sou eu!
Por isso, darei uma pausa nas postagens.
Estou em ritmo de celebração!


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Reencontro com Pã (brincadeira poética ou arranjo fictício?)


Releitura em O Quarto, de Van Gogh




Calçar as velhas pantufas de couro de cabrito, era só o que eu queria ao chegar em casa. Eram eles, os chinelos velhos, o meu vínculo comigo. A certeza de não estar fora da órbita normal dos fatos cotidianos.

Li, outro dia, nem sei mais onde, que Rembrandt contornava com uma auréola, como a dos santos, pequenos objetos de seus quadros:

Um gato,
Um cachimbo,
Um par de botas.

Mesmo nos quadros mais solenes, nas paisagens mais majestosas, algo considerado banal recebia um, como que, fanal, a iluminar a peça, de modo que, antes insignificante, comum ou trivial, projetava-se, agora, a coisa aureolada, de encontro ao observador, como a lhe dizer:

Cá estou eu!
Humilde objeto, mas com reverberações em tua alma.
Fincar-me-ei no teu inconsciente.
Eu, oculto morador das tuas sombras,
coisa latente, venho à superfície,
para fazer-te estranhar o que te é familiar.

Enfim, depois de tantas desventuras, na velha estrada de meus ancestrais, cheguei em casa. Corri pros meus chinelos! Cansado da estrada carroçável, dos enguiços de motor, das maçadas. Ufa! Os pés sentiam falta do conforto das pantufas.

Abro a janela, por onde entra a aragem do nordeste; então escuto um assovio estranho, enigmático. Lembra-me a voz de uma flauta de caniços. Talvez, o silvo de um fauno, brinco com meus botões. Deve ser coisa da ventania, penso eu, enquanto procuro, tateando sob a cama, as minhas pantufas. No entanto, um troço duro feito uma ferradura, é o que sinto na ponta dos dedos. Olho para os meus pés e um calafrio me sacode.

Lá fora, o solo de pífaros da ventania continua.
Um arrepio me vai atravessando a espinha.

Olho outra vez pra baixo, entre receoso e intrigado, e vejo, como saída de um quadro de Rembrandt, uma auréola azulada a envolver meus velhos chinelos, ora transformados, só Deus sabe como, em dois bizarros pés de bode. (rsrsrs)

























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Nota:
Só um fauno, pra me fazer publicar essas minhas brincadeiras infantis... rsrsrs

Releia o miniconto, ouvindo Prelude L'Apres-Midi D'Un Faune, de Debussy:




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Fonte da imagem:
Releitura de "O Quarto" de Van Gogh








segunda-feira, junho 22, 2009

Syrinx (flauta interior)




























Súbito, um abraço no Vazio
E a sensação
De que a Vida,
ninfa ligeira, que me escapa sempre,
Não faz nenhum sentido.
Apesar da taxonomia de Lineu,
Dos exercícios meta/físicos matinais,
com Alice no jardim;
E das dietas fáceis da auto-ajuda,
A vida sempre escapa, às margens desse rio.

Abraçar-se ao inesperado bambuzal
E adentrar em Pã.
Em pânico,
Sem pai, nem mãe.
Sem o aconchego de um lugar conceitual.
Sem as respostas prontas para as perguntas
Nossas de cada dia.


Abraçar-se ao bambuzal
despido das noções
Daquele mundo exato (e antinatural).

Quer vir comigo?
pergunta o Medo Imenso.

Agora, as mãos geladas
As patas, trêmulas.
Mais animal que racional.
Vertigem em poço fundo.

Mas, resta-me um flautim.

Aos poucos, ir soprando
o ar, nos dutos d'alma do bambu.
Sentir a náusea ir se tornando
em ária. Arfante, o peito nu.
Ouvir, do bambuzal, sua voz de flauta,
fêmea, dulce, sensual.
E haurir, serenamente,
o eros
da reconfortante vida trivial .

.........................Luiz Eurico de Melo Neto


Img flautista
http://aflautadepa.blogspot.com/

O Vazio em Pessoa (ouvindo Pã, na velha estrada d'Aldeia)



























Trila na noite uma flauta.
É de algum pastor? Que importa? Perdida
Série de notas vagas e sem sentido nenhum,
Como a vida.
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
A ária alada.
Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
De não ser nada.
Não há nexo ou fio porque se lembra aquela
Ária ao parar, e já ao ouvi-la
Sofro a saudade dela
E o quando cessar.




..............................................Fernando Pessoa


Fonte da imagem:
http://deliriodoonirico.blogspot.com/2007/02/ao-som-da-flauta-de-p.html

Nota do blogueiro:
Este poema do Pessoa não possui título.
O título é da postagem e não do poema.
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domingo, junho 21, 2009

Duplo Etéreo (relato de EQM)





Na estrada velha de Aldeia,
longa e sinuosa estrada,
soprava o vento em meu rosto
em alta velocidade.
Na velha estrada eu fugia
Do que há de mim na cidade.

Essa aflição de homem urbano
nessa polis saturada:
Angor;
Náusea;
Arritmia.
Medo de tudo e de nada.

De repente,
na tangente
De uma curva acentuada
Saí de mim
E da rota
Segura da velha estrada...

Lembro que vi bambuzais.
E uma luz triangular.
Duplo etéreo?
Fogo-fátuo?
Perdida a noção de espaço
às margens da velha estrada.
Fiquei ouvindo zumbidos
de auto-rádio, ruídos,
sons de maracás e guizos
feito sons de pajelança,
no acostamento da estrada.

Na velha estrada de Aldeia,
sinuosa e velha estrada,
Por um instante eu fui veículo
Da plenitude do Nada.




sexta-feira, junho 19, 2009

Hino ao Vazio




























Se algum dia, ao guiares por uma avenida,
Peixes inesperados
pairarem por sobre tua cabeça
Se os edifícios, de repente, se tornarem bambuzais...
E sons de cristais liquefeitos
surgirem como estranhos algoritmos
Invadindo-te o labirinto...

Se, de súbito, sentires um frêmito
Em teu córtex cerebral
Se pequeninos filamentos piscarem em tuas órbitas
Se uma subitânea Andrômeda arremeter contra a Terra
Se sob teus pés sumir o chão...

Creias, já não és mais teu.

Canta, pois, ave fugaz,
Que estarás livre de ti.
Canta e dança como quem ouve Debussy.
Desliza por um tobogã de brumas.
Salta com os carneirinhos nas nuvens de algodão.
Já não és mais teu!

Todas as tuas posses
Teu cadastro de pessoa física
Teu veículo-passeio
Tua pertença e teu nome
Tudo que te fazia ser teu
Toda essa simbologia que te dava nexo
Nesse dia, já não será mais.
Já não serás.

Folga, pois, ave liberta,
Trinta raios rodeiam a roda
Mas só o vazio do eixo a faz rodar.
Rejubila-te!
Tu serás um vaso vazio.

Os entraves e os entreveros;
As avenças e as desavenças;
Tudo sumirá.
As coisas todas derreterão sob uma luz quântica.
Tudo avançará sereno para o nada.

Esvaziado serás livre...

E eterno
como o Tao.

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Deixo para meditação dos leitores o Poema XI, do “Tao te King”,
tradução de Emmanuel Carneiro Leão:

Trinta raios rodeiam um eixo
mas é onde o raio não raia
que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso.
Mas é o vazio
que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas
mas é onde não há nada
que se está em casa.
Falam-se palavras
e se apalavram falas,
mas é no silêncio
que mora a linguagem.
É o Ser que faz a utilidade.
Mas é o Nada que dá sentido.

*******************************

Encontrei no
Entre Textos a seguinte glosa do Rogel Samuel:

"Os raios seguram e convergem na roda, mas não a são. No vazio do vaso é onde encontramos a água, posta em vasilha. A roda roda no vazio dos seus raios, o vaso envasa no vazio de seu bojo, entre as paredes há o espaço de nossa casa, as palavras se costuram na linha do discurso, em continuidade: mas a linguagem não tem som, tem sentido, e o que é expresso se encontra no seu conteúdo – no vazio do vaso da fala, na poesia da linguagem, o seu silêncio."



Fonte Poema XI e da Glosa:

http://www.45graus.com.br/entre-textosp.php?id=24672

Fonte da imagem:
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=465768






quinta-feira, junho 18, 2009

Três poemas de Walt Whitman








Edição comemorativa dos 150 anos de Leaves of Grass(Iluminuras - 2005)


A postagem anterior traz a lembrança de que, neste ano de 2009, comemoram-se os 154 anos da publicação da primeira edição do livro Folhas de Relva (Leaves of Grass), de Walt Whitman.
Livro tão longevo, porém, de uma atualidade impressionante. Um lirismo revolucionário e transgressor, que anteciparia em quase dois séculos, questões postas em nossa contemporaneidade: discriminação, sexualidade, e liberdade. Pugnava o jovem poeta pela convivência harmoniosa entre as pessoas de todos os credos, cores e opiniões. Questões da vida moderna, já antecipadas pela temática libertadora desse vate, iluminado e universal.




Vida

Sempre a desencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

******************************

Esta é a Forma Fêmea

Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
*************************

Canção de mim mesmo


"Walt Whitman, americano, um bronco, um kosmos,
Agitado corpulento e sensual....comendo e bebendo e procriando,
Nada sentimental....alguém que não se põe acima dos outros homens e mulheres
Nem deles se afasta....nem modesto nem imodesto.
Arranquem os trincos das portas!
Arranquem as próprias portas dos batentes!
Quem degrada uma pessoa me degrada....e tudo que se diz ou se faz no fim volta pra mim,
E o que eu faça ou diga volta pra mim,
A inspiração surgindo e surgindo de mim....por mim a corrente e o índice.
Pronuncio a senha primeva....dou o sinal da democracia;
Por Deus! Não aceito nada que não possa devolver aos demais nos mesmos termos.
Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo,
Vozes das intermináveis gerações de escravos,
Vozes das prostitutas e pessoas deformadas,
Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões, (...)
Por mim passam vozes proibidas,
Vozes dos sexos e luxúrias....vozes veladas, e eu removo o véu,
Vozes indecentes, esclarecidas e transformadas por mim.
Não cruzo os dedos sobre a boca,
Cuido bem dos meus intestinos tanto quanto da cabeça ou do coração,
A cópula não é mais indecente do que a morte.
Acredito na carne e nos apetites,
Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim."




***************************************
Poemas do livro Folhas de Relva
Fonte:
http://www.citador.pt/poemas.php?poemas=Walt_Whitman&op=7&author=256

terça-feira, junho 16, 2009

Ode ao lirismo whitmaniano

imagem do Google



..................... 
Melhor mesmo é dizer que o céu está azul,
Quando ele, de fato, azul está.
E aconchegar-se à realidade de um dia azul...

Às vezes, me dá essa necessidade de um lirismo transgressor,
lirismo de automóvel desgovernado.
De céu vermelho em manhã tempestuosa.
Lirismo de força centrífuga em órbita incerta.

Então olho para meus pés
E, cá do alto, me vejo majestoso.
Essas bobagens que circulam
em um cérebro propenso às tolices místicas.

Achegar-se ao mundo com lentes convexas
E rir-se só pelas ruas.
Rir-se das inúteis verdades nuas e cruas.
Rir-se como um pândego
Ou como uma criança,
Que, em sua poderosa inocência,
supera leões e dromedários.

Rindo, apropriar-me das certezas
fugidias feito sons de pífanos.
Essas inumeráveis evidências que me seguem
Como a um flautista que enfeitiça camundongos.

Um mundo lá fora está a ruir.
Que me importa o mundo, ó meus botões!
Importa que desabrochem p/rosas desses brotos.
Importa o folguedo de homens rotos.
E a festa dos sentidos quando nada faz sentido.

Entanto, ouvia-se um fragor de catadupas
E era estranho o sono que me dava nalma.
Melhor mesmo é dizer que o céu está azul,
Quando ele, de fato, azul está.
E aconchegar-se à realidade de um dia azul...

domingo, junho 14, 2009

EULÁLIA (um fado à lusofonia)































OIÇO um canto de fadista.
És tu que cantas,
A essas minhas esp’ranças,
Que são tantas:

Sons em voz de lusitana
rapariga
...trazes, dos mediterrâneos,
as cantigas,
feito rios subterrâneos
de água amiga,
que escorrem, escondidos,
Deus o sabe,
à foz, em mar cristalino
do Algarve...

***

É teu, o aceno triste
de saudade,
no lenço branco que vejo,
vindo dos balcões moçárabes?

***

Um dia fiz duas trovas
com sotaque visigodo,
numa eufonia de motes,
lamentando a pouca sorte
de meu coração tão doudo:

I

A saudade singra os mares
Desviando dos abrolhos
E se alimenta dos ares
Da lembrança dos teus olhos.



II

Ontem foste campesina
A ouvir cânticos moiros;
Já te encontrei concubina
Dum sultão lúbrico e loiro.


***

Todas as linguagens trazes
numa etimologia
de cristais
em fonemas aéreos e vocálicos;
musicais.

Música aleatória e vária
em plangentes alaúdes:
ai! moiraria!
Potros, selins, bandeirolas,
A festejar tua vitória
Que é tão minha!

Vielas da Albufeira:
Casas lavadas de branco.
Quanta luz!
Não adianta chorares
Quero cruzar verdes mares,
com essa cruz.
Eis as velas triangulares
de uma fragata ligeirinha
que, por fé, minha rainha
batizara de... Jesus.

***

É teu, o aceno triste
de saudade,
no lenço branco que vejo,
vindo dos balcões moçárabes?



*******************************


A imagem, cujo sítio originário está nela linkado,
é da Albufeira, região de Algarve, Portugal,
último recanto luso tomado aos mouros,
derradeiro nicho de resistência da Língua Portuguesa.
Embora, aqui, não se negue a riqueza dos empréstimos linguísticos
e do vocabulário da cultura árabe.

Ave, Mátria!!!
Ave, nossa Língua Portuguesa!!!


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Nota do editor:
reeditar Eulália foi a minha maneira
de trazer o lado positivo do elemento branco
na formação da alma ancestral brasileira,
fechando essa série de poemas, que se iniciou
em maio, com o poema Tantãs, uma celebração,
e se encerra com este Eulália, uma loa à língua portuguesa.


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sexta-feira, junho 12, 2009

DOR, AQUÉM DO BOJADOR (um clamor no Quinto Império)

























I – A Travessia


Um estranho olhar crepuscular,
Volveu-se àquele antigo novo mundo.
E fez-se o homem ao mar,
Ao imenso mar,
à luz azul, índigo azul, de um céu profundo,

O leme aponta a rota pr’acolá...
O vento empuxa as velas,
Um zéfiro insufla o ar.

Se há algum nexo no mar,
Ante as borrascas,
Se essa nau menear nas vagas altas
E a saudade singrar pr’além da dor...
Todo o nexo que há,
deixo aos cartógrafos,
aos nautas que souberam dos peligros
E aos que avançaram empós
do Bojador.















II – A Chegada


Sopram frautas na floresta,
Mas, não há faunos por cá?
‘Stão nuas as rap’rigas,
Com as desonras à mostra
Mas, ninfas, tampouco, as há.

Há iaras, sete-estrêlos,
Pai-da-mata, m’boitatá,
Rubra tinta da madeira
Caju, fruta-guaraná.
Papagaios, capivaras,
Boas eiras, águas claras;
em se lavrando, tudo dá.






















III – A Invasão


Fincaram u’a cruz bem alta...

Se era do Cristo ou de Malta,
Por que trazia a má sorte,
Doenças terríveis, morte,
Se era do bem o fanal?

Será que valeu a pena,
Ter cruzado o Bojador?
Valeu o imenso pecado,
Que tiveste perdoado,
Abaixo do Equador?

Nem tudo valeu a pena,
Pois tu'alma, tão pequena,
Nos causou tão grande mal.
E te devolvo a pergunta,
Tua mística pergunta,
Antiqüíssima e ancestral:

Quantas lágrimas foram nossas
Pra fazer teu mar de sal?

Fecha a porta desses mares!
Jamais navegue essa nau.
Tua flâmula é da vergonha,
Genocida e anti-vital.

E em que hora tão medonha nos tornamos Portugal.



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Imagens do Google.


Fonte da mid:
http://www.saturn-soft.net/Music/Music1/MIDI/Classic2/DebussyFaune.mid



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