Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

segunda-feira, abril 20, 2009

O Carcará (volataria rés-do-chão, ou um close-up cabralino)





















Ainda o inútil:
(Abril, 2009)
Chove sobre as pedras do Recife. Chove muito. A cântaros. Encolhe-se o homem entre as pedras, num palafitas, franzino.
Hoje estou encharcado de poesia. Pedra. Ou cabra, que não gosta d’ água. Cabra e Pedra. A ouvir Tárrega e ler Cabral. Dois hispânicos, ibéricos, imensos. Entre eles e eu, a água, imensa, o mar... E esses ecos intertextuais:



O Carcará
(volataria rés-do-chão, ou um close-up cabralino)


O carcará é o eco do eco,
Do eco seco,
Onomatopaico eco.

Falcão modesto
E sem estirpe
Que, não se apresta, de resto,
Aos exercícios fidalgos
Da caça em volataria.
Voa rés-do-chão, rasante,
Vôo sem nada elegante
Aqui mesmo, nas barrancas
À jusante ou à montante,
do leito seco do rio.


Tem um pouco de caprino (cabra alada?)
Quando escava o chão infértil
No vão das palmas de espinhos,
caçando o rato-preá
que se esconde entre as raízes.


Um pouco de cabra ou de ema,
Outra ave de pouco senso,
Pois não escolhe alimento.
Come tudo. Rato, lagarto e cobra.
E por que haveria de escolher
entre as pedras da escassez?

Vai reto e certeiro, ao ponto.
Bicho do mato, agreste e rude,
Não faz o arrodeio e o rito
Funéreo, assim como o abutre
Que espera a morte matar.

A fome, que dá sentido
Ao seu jeito de caçar,
Não lhe permite a espera.
E nem se diz que ele caça,
Pois caça é arte mui nobre,
Pra um bicho pobre e sem raça
Pra um bicho sem sobrenome.

O carcará vai bem reto
Guiado por sua fome
Não metaforiza a lida,
Não tem pena, não vacila,
Que nenhum dó lhe consome.
Pega e arrasta a lagartixa
Abre-lhe o ventre
E, ali, come.

Lições de vida
Pros homens,
Crias da caatinga braba,
Ventres e bocas aflitas,
São os carcarás e as cabras,
Emas, ratos, lagartixas;


Lições de vida
E de morte.
De fado, de sina e sorte,
Homem e bicho
Bicho e homem.
Fauna em flora estiolada.
Juntos na mesma desdita.

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Eurico


(perdoem-me a audácia de postar esse meu gavião rasteiro,
logo depois da altaneira Cabra do João Cabral.
Reputo isso à diversidade da fauna poética. rsrs
Mas, de poeta e de louco todo mundo tem um pouco.)



Pós-escrito: sobre ser hispânico o tão nosso João Cabral,
é que sua alma oscilava entre Sevilha e Recife.

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Clique na imagem para saber sua origem.


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25 comentários:

Paula Barros disse...

Oi, vizinho rsrsr

Se dizem que os poetas podem tudo, você, pode tudo e muito mais.

Sempre inteligente e criativo. abraços

lula eurico disse...

Obrigado. Vc é muito generosa comigo, vizinha. Maas, pela primeira vez, minto, pela segunda vez, pois a primeira foi com o poema Ciranda da Inutilidade, eu tive medo de postar algo. Medo de não medir o tamanho da minha presunção. Mas, depois dos 50 e antes dos 7 anos, a gente não deve medir muito as ações. Com 7 é muito cedo e com 50, não dá mais tempo! kkkk

Abraço fraterno.

Ester disse...

Eurico,

Suas 'viagens' são lindas, com direiro a muita cultura, informação e erudição,

o melhor disso é que vc
nos leva junto!

Isso vale tanto para o seu comentário em meu blog quanto
para a sua postagem,


essa imagem é maravilhosa!


bjs!

lula eurico disse...

Ester, amiga, é que viajo demais em meu universo interior que tenho que fazer referências. Referências, aulas, jamais. rsrs Aulas recebo de vc, com sua serenidade e ternura. Bom ter uma amiga com vc.
Abraço fraterno e de aprendiz. rss

Gerusa Leal disse...

Quando eu crescer, Eurico, e virar gente grande, quero poemar assim feito você. O Carcará não deixa nada a dever à Cabra.
Abraço e obrigada por tanta beleza.

Luis Eustáquio Soares disse...

belo poema, querido eurico, cabralino e pré-cabralino, a um tempo, tal que o carcará vai metamorfoseando em outro de outro, num sistema de caça-e-caçado em que a escassez nos ensina, ou pode ensinar, que é no rés-do-chão do mundo, das práticas e dos saberes, que a batalha da e pela vida ocorre, sem abstrações ou metafísicas, sendo a partir daí, do rés-do-chão de tudo, que devemos começar, mediar e recomeçar.
sobre o poema do meu blog, foi elaborado quando atendi a uma crente, em minha porta, no dia da páscoa, que me leu uma passagem da bíblia que dizia, mais ou menos:" a morte há de acabar". assim rabisquei o rabiscado-carcará poema.
saudações,
luis de la mancha.

Elcio Tuiribepi disse...

OLá Eurico...como perdoar? Temos é que agradecer pela imagem e pelo poema...Uma outra imagem que adorei é a do blog aí em cima...que bonito rapaz...
Mas lendo um coments seu na Esther sobre brincar com latas de leite e barbante...eu sorri sozinho aqui...lembranças assim fazem bem...Ahhh...e como fazem...bom feriado amigo...um abraço na alma

Dora disse...

Amigo Eurico. Hoje me bateu saudade de refletir sobre a vida, à luz dos "bons escritos dos blogs". E, abri sua página, na certeza de confirmar minha expectativa.
Um quadro completo me apareceu: o som do violão de Tárrega me predispondo aos sussurros da alma, a foto do carcará, já entreabrindo a intenção do texto. E, o texto!!
Você está mesmo "encharcado de poesia".
E entre dois ibéricos, como você bem explica, seu texto surge como o retrato da aridez do sertão, com a figura símbolo do falcão modesto, deselegante e, sobretudo, faminto: o carcará.(lembrei-me da interpretação magistral de Betânia, na canção).
Compara-o à cabra do nosso poeta e ficou uma perfeição: uma "cabra alada", sim.
O carcará que não serve à fidalguia, nas volatarias, apresenta sua singular forma de caçar: das garras para o bico, sem torneios ou volteios.
A caatinga aproxima fortemente homem de bicho. O carcará é essa figura e essa representação.
Não sei se vou cometer uma heresia literária, mas seu poema não ficou nada a dever ao de João Cabral.
Você é um talento, amigo.
Desejando que meu comentário chegue até você, envio-lhe meu caloroso abraço.
Dora

Unknown disse...

Eiiiiiiiiiiita haja inspiração :)

"No meu Lugar.
Tem seus mitos e seres de Luz.
Lá tem samba até de manhã.
É sorriso, paz e prazer.

Doce lugar.
Que é eterno no meu coração.
E aos poetas trás inspiração.
Ahh que Lugar...
(Copiando o poeta A.Cruz)

Abrs.

Abrs.

Unknown disse...

Tive que buscar no google o significado de carcará.
Gostei do bichinho, muito.
Bicho não tem estirpe, que nada, só na tua bela poesia onde tudo vale, de resto, todos fazem parte desta natureza maravilhosa que Deus nos deu e a gente teima em maltratar...
Beijos

lula eurico disse...

Primeiro, a Dora:
fico honrado e feliz em ter vc por aqui. Só não sou digno nem de amrrar as alpercatas do João. E sem a Cabra, talvez nem existisse o Carcará. rs
Abraço fraterno, amiga querida.

lula eurico disse...

Gerusa, poeta da minha admiração, vc já é grande, imensa, tanto na ars poetica, quanto no coração generoso.
Grato. Mas como disse, não sou digno nem de amarrar o cadarço dos sapatos do poeta João.
Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Luís, meu xará, meu mestre e padrinho na blogosfera, só vc pra ver tanto em tão pouco. Carcarázim pretensioso, né?
Abraço fraterno.
******************
Ah, se fosse verdade o fim da morte! A física, digo eu. Pelo menos o fim das doenças, da fome, da miséria. Seria o paraíso.
Belo poema, o teu!

lula eurico disse...

Élcio, amigão querido. Das latinhas de leite ninho pra esse PC, o menino teve uma baita transformação. Mas tudo é muito lúdico, né. rsrs

Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Yvy, querida, bom te ver! Grato pelas tuas palavras sempre carinhosa. Volta sempre. Traz essa brisa carioca pra cá.
Abraço fraterno.

lula eurico disse...

Jeanne, irmã e amiga e caminhante desse planetinha azul. Também uso o google. Ele é maravilhoso! Veja esse close-up de gavião! Foi o google.
Grato pela tua visita.
Muita paz.

Regina Coeli Carvalho disse...

Sua poesia suscitou lembranças da minha pré-adolescência quando Betânia surgiu cantando Carcará. A imagem que ficou foi de um pássaro malvado.
Hoje, através da sua poesia, percebo o carcará buscando somente a sobrevivência enquanto os homens pegam, matam e comem.
Carinhoso abraço.

Beti Timm disse...

Eurico,

bendita seja essa tua pseudo presunção, que me enfeitou os olhos e o coração com o mais lindo poema que já li!
Só posso pedir humildemente,melhor implorar: seja mais vezes presunçoso! Meus olhos, meu coração agradecerão de joelhos!

Beijos, caro poeta

Ps.: quem é mesmo João Cabral? rs

lula eurico disse...

Regina,
Não há "malvadeza" nos bichos. Mesmo com toda a agressividade nos atos, o bicho quer apenas sobreviver. Maldade só no humano. Esse sim, tem consciência do que faz, e mata mesmo depois de saciada a fome.

Abraço fraterno.
(Também ecoa aqui no Eu-lírico, intertextualmente, a canção de João do Vale, na voz agreste e bela de Betânia.)

lula eurico disse...

Beti, cá entre nós, o João, pernambucano, parente do famoso Gilberto Freyre e contraparente do Marco Maciel, foi um diplomata brasileiro em Espanha. Compôs Morte e Vida Severina, que foi transformada em peça de teatro, musicada pelo Chico Buarque, nos tempos da ditadura. Bem. É um poeta dos grandes. Imenso. Como o Drummond e o Pessoa. Talvez não tão famoso. Por isso foi muita maluquice ter postado esse Carcará, depois de ler e reler o Poema(s)Cabra.

Abraço fraterno e afetuoso, amiga.
Volta sempre e grato pelos elogios, que sei são devidos ao teu coração generoso.

Vivian disse...

...quando venho aqui,
coloco roupa de gala,
visto-me de cultura...
a casa merece...

e é sempre delicioso
receber tão lindo poeta
em meu humilde chão.

bjs procê!

lula eurico disse...

Ai, Vivian, assim vc me deixa todo prosa. Vc é que merece toda a atenção do mundo, toda pompa, e tapete vermelho na entrada do Eu-lírico.
Grato.
Abraço fraterno.

Soninha disse...

Olá, Eurico!

Pelas informações que recebemos, aqui em seu blog, deixei um selinho pra você, lá no Roda, ok?!

Muita paz! BeijosssssAUDADEssssss

Éverton Vidal Azevedo disse...

Eurico,

Eu ia dizer algo sobre isso, de estar aqui reunidos a Cabra de Cabral e o seu carcará. E antes, coisas "inúteis" de Jorge de Lima. As duas li anteontem. E nem precisava você dizer que a gente perceberia a influência cabralina no seu gavião rasteiro.

Eu gosto dessa beleza, viva, porém áspera, árida. Só um poeta nordestino pra fazer algo sim.

Ps.: Quando/se fizer um banner me avise.

Inté.

Éverton Vidal Azevedo disse...

Eurico, este poema me inspirou um tema instrumental. Escrevi ontem rs. Tou imitando o projetodo Hermeto Pascoal "calendário do som", tentando escrever um tema instrumental por dia até 11 de abril do ano que vem (meu aniversário). 'Bora ver se consigo rs.
Ontem compus "Carcará". Estou feliz. Melhor que isso só conseguindo gravar algumas no futuro rs. Quem sabe?

"O carcará é o eco do eco,
Do eco seco,
Onomatopaico eco."

Isso tem uma música, compasso composto mas bem sincopado. Que massa.

Um abraço.