Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Reflexões de Cinzas: Loas a João Cândido



Viver é sublevar-se!
Resistir quando tudo diz pra desistirmos.

Ser honesto
em meio à vilania.
Buscar justiça
em meio à tirania.
Erguer a fronte
contra o despotismo.


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João Cândido, o Almirante Negro,
vendedor de peixes na Praça 15- RJ, até morrer em 1969.

Sobreviver honradamente à miséria
é também uma forma de heroísmo.


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Em 2010: 100 anos da Revolta da Chibata

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domingo, fevereiro 22, 2009

Reflexões de Carnaval: um maracatu e seu nome















FOTOMONTAGEM ELETRÔNICA DE ADROALDO BAUER.


Corria o ano de 1931, e nos bastidores da política do Estado Novo era decidida a expulsão, pela polícia do Rio, de um francês: o escritor surrealista Benjamim Péret. Seu crime? Ter retomado em um livro chamado O Almirante Negro, a famosa revolta da chibata, numa abordagem que fazia um paralelo com o levante da esquadra russa na baía de Odessa, ocorrida em 1905, e que deu tema à ação do famoso filme de Eisenstein, O Encouraçado Potemkim.

A recriação e a análise que o francês Péret faz da revolta de 1910, ou seja, apenas 5 anos depois dos russos, e liderada por um marinheiro negro, que também se insurgia contra os castigos corporais na esquadra brasileira, provocam sua expulsão do país, em dezembro de 1931.
O livro de Péret era protagonizado por João Cândido Felisberto (1880-1969), cognominado de Almirante Negro, até pouco tempo, um dos nomes proibidos pela Marinha brasileira, sempre constrangida com o fato de um simples marinheiro ter assumido o comando da nossa esquadra, recém-chegada da Inglaterra, quando a sua oficialidade ainda estava aprendendo com os oficiais ingleses como manejá-la.
O paralelo com a revolta do Encouraçado Potemkim fez com que, em novembro de 1931, a edição inteira do livro fosse confiscada. Segundo Jean Puyade, professor e jornalista francês, somente quatro folhas do texto foram encontradas pelo pesquisador Dainis Karepovs e testemunham o vigor que deveria ter sido o conjunto da obra, cujo manuscrito estava pronto em setembro de 1931.

A coincidência desses fatos e datas com a fundação do
Maracatu Almirante do Forte, em 7 de setembro de 1931, me deixou deveras encafifado. Contaram-me que o nome desse maracatu deve-se ao nome de um navio de guerra atracado no porto do Recife, na Semana da Pátria, naquele ano de 1931. Sei não! Quase todo navio de nossa Marinha tem nome de Almirante Fulano de Tal. Mas, apenas Almirante...esquisito isso né?

Interessante ressaltar que, em setembro de 1931, era também fundado o primeiro partido político de negros no Brasil, a FNB, Frente Negra Brasileira. Apesar de que também eram anos de perseguição aos terreiros de candomblé, pelo Estado Novo.
Não é curioso que, com tantos fatos ligados à negritude acontecendo no Brasil, naquele ano, um maracatu escolhesse para seu nome de batismo enquanto nação africana, o nome de um simples navio?
O que tem um navio a ver com a história de um maracatu, a não ser a lembrança dos funestos navios-negreiros?
Deixo essa pergunta no ar.
E salve o Almirante Negro!!!
Pois, no meu íntimo, algo me diz que o povo negro que fundou o Almirante usou de um estratagema, comum à época da repressão, para driblar a polícia política do Estado Novo, dizendo que Almirante era o nome de um navio. Que nada! O Almirante verdadeiro deve ser o marinheiro negro João Cândido, que 21 anos antes da fundação do maracatu, manobrou, sozinho, a moderníssima esquadra atracada no Rio, num feito memorável e digno de nomear qualquer instituição afro-brasileira, inclusive um maracatu.
E, se estiver ao meu alcance, o Almirante do Forte, em breve, homenageará o notável Almirante Negro.


Fonte das informações:
Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931)
Jean Puyade (professor e jornalista francês, especializado em América Latina)
http://www.oolhodahistoria.ufba.br/artigos/benjamin-peret-surrealista-brasil-jean-puyade.pdf


Fontes auxiliares:
PÉRET, Benjamin. .A palavra a Péret. (Cidade do México, Novembro de 1942). In:
PÉRET, B.; GOMBROWICZ, Witold. Contra os poetas. Tradução, introdução e notas de Júlio Henriques. Lisboa, Antígona, 1989, p. 51.
www.oolhodahistoria.ufba.br - Edição Nº 8





Fonte do samba:

http://www.boemio.com.br/midivoice/nacionais/

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P. S.: Abaixo transcrevo a letra original do samba, antes das alterações da censura em 1970:
Fonte:
http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html


O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)


Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais


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Veja no youtube:
A REVOLTA DA CHIBATA

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domingo, fevereiro 15, 2009

Áptero (um repente nordestino)



















Quebradas, as asas que não temos,
dóem muito mais, quando não vemos
onde é que dói a dor,
ou não sabemos...

E que dizer do homem, ser terreno,
cria da terra, errante, o mais pequeno,
a querer avoar, bicho sem asa,
e, afinal, rastejar, dentro de casa,

tateando, a perseguir, em si,
seu proprium, em chã bem rasa?

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Eurico
15 fevereiro 2009


(um improviso pra Mai,

ou seja, uma singela modinha, inspirada em Dante Alighieri,
na qual também ecoa uma secular oitava camoneana)

P.S., em 16/02/2009:

Não resisti à tentação e lhes trouxe a tal oitava de Camões,
que dedico ao Jair que existe dentro de cada um de nós:

"Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"
(Luís de Camões)




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sexta-feira, fevereiro 13, 2009

O Povoado dos Moinhos - Akira Kurosawa



















Diálogo entre o ancião e o viajante


Diálogo reproduzido do último conto do filme "SONHOS" de AKIRA KUROSAWA (Akira Kurosawa’s Dreams), denominado O POVOADO DOS MOINHOS ( Village of the Watermills).
Este trecho do filme traz uma mensagem aos seres humanos de todo o planeta.
Um velho sábio fala ao moço da cidade grande sobre as coisas que considera as mais importantes na vida de uma pessoa: a água e o ar puro.

De que adianta tanto conforto proporcionado pelas invenções da modernidade, se não há mais paz e se as pessoas esqueceram que preservar a natureza é fundamental? O filme termina com uma lição: um cortejo festivo para celebrar a morte de uma senhora de 99 anos – afinal, nada mais justo do que se despedir de uma pessoa que viveu muito bem e de forma completa com dança e música.


Viajante – Qual o nome deste povoado?
Ancião – Não tem. Só chamamos de “O Povoado”. Alguns chamam de Povoado do Moinho.
Viajante – Todos os habitantes moram aqui?
Ancião – Não. Moram em outros lugares.
Viajante – Não há eletricidade aqui?
Ancião – Não precisamos. As pessoas acostumam-se ao conforto. Acham que o conforto é melhor. Rejeitam o que é realmente bom.
Viajante – Mas, e as luzes?
Ancião – Temos velas e óleo de linhaça.
Viajante – Mas a noite é tão escura.
Ancião – É. Assim é a noite. Por que a noite deveria ser clara como o dia? Eu não ia querer noites claras, que não deixassem ver estrelas.
Viajante – O senhor tem arrozais. Mas não tem tratores para cultivá-los?
Ancião – Não precisamos. Temos vacas, temos cavalos.
Viajante – O que usa como combustível?
Ancião – Lenha, na maioria das vezes. Não achamos direito cortar árvores, e muitos galhos caem sozinhos. Cortamos e usamos como lenha. E para carvão de madeira, poucas árvores aquecem tanto quanto uma floresta. Também estrume de vaca dá bom combustível. Gostamos de viver respeitando a natureza. As pessoas, hoje, esqueceram que são apenas parte da natureza. Mas destroem a natureza da qual dependem nossas vidas. Elas sempre acham que podem fazer melhor. Especialmente os cientistas. Podem ser inteligentes, mas não compreendem o verdadeiro significado da natureza. Só inventam coisas que tornam as pessoas infelizes. Mas têm tanto orgulho das invenções deles. Pior é que muita gente também se orgulha. Encaram-nas como milagres. Idolatram-nas. Não percebem, mas estão perdendo a natureza. E, como conseqüência, vão morrer. As coisas mais importantes para o ser humano são ar puro e água limpa, as árvores e grama que os produzem. Tudo está sendo poluído, e perdido para sempre. Ar sujo, água suja, sujando os corações dos homens.
Viajante – Vindo para cá, vi algumas crianças colocando flores em uma pedra ao lado da ponte. Por quê?
Ancião – Ah, isso. Meu pai me contou uma vez. Há muito tempo, acharam um viajante morto, perto da ponte. Os aldeões ficaram com pena e o enterraram lá. Colocaram uma pedra na tumba dele e puseram flores. Tornou-se um costume colocar flores lá. Não só as crianças. Todos os aldeões colocam flores quando passam, embora a maioria não saiba por quê.
Viajante – Há um festival hoje? (ouvindo uma festividade aproximando-se).
Ancião – Não, é um funeral. Acha estranho? Um funeral é sempre agradável. Viver bem, trabalhar bem e morrer com agradecimentos é louvável. Não temos templos nem sacerdotes aqui. Assim, os próprios aldeões levam os mortos até o cemitério da colina. Mas não gostamos quando jovens e crianças morrem. É difícil comemorar tal perda. Mas, felizmente, as pessoas deste povoado levam uma vida natural. Então, morrem de acordo com a idade. A anciã que vai ser enterrada viveu gloriosamente os 99 anos. Agora, vou unir-me ao cortejo. Com licença. Na verdade, ela foi o meu primeiro amor. Mas ela partiu meu coração e me trocou por outro. Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!
Viajante – A propósito, quantos anos tem?
Ancião – Eu? Cem... mais três. Boa idade para parar de viver. Uns dizem que a vida é sofrimento. Isso é bobagem. Sinceramente, é bom estar vivo. É emocionante.

(O ancião dirige-se à estrada, seguido pelo viajante, para juntar-se ao cortejo festivo. Cumprimenta cordialmente o viajante e une-se aos outros aldeões em festa. O viajante assiste admirado o cortejo passar e, antes de retirar-se da aldeia, deposita flores na pedra do túmulo do viajante morto. A paisagem é indescritivelmente bela... E os moinhos, girando no ritmo da correnteza do rio, expressam o ritmo da vida).

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Fonte do texto e da imagem:


http://www.caminhosdeluz.org

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Assista no youtube:

O Povoado dos Moinhos



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(Ah, os grifos são meus. rs)

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quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Brasa e mel (reeditado para Allana)
















A criança vê fundo e antes,
um mundo feito em relações desconcertantes.
Faz a eternidade,
agarra o instante,
consegue ver até, olhos ausentes,
o modo sutil,
em que do sono da brasa, latente,
brota o mel...

A criança é mãe do sonho,
sabe os secretos sentidos,
tem a ciência da fauna
e a presciência da flora.
Conhece o segredo antigo
que da pequena semente
faz surgir o baobá.

Os gregos chamavam physis
e os romanos, natura;
e a criança, sem dar nomes,
brinca com as coisas futuras;
desmonta o reino dos homens,
governa o reino do céu,
paira com Deus sobre as águas,
toma banho de chapéu.

A criança doma o medo,
rasga o finíssimo véu
sobre o sentido da Vida:
Só ela sabe o segredo,
o indizível segredo,
com que a brasa gera o mel.

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de uma conversa no ateliê

do Eugênio Paxelly

06.07.2000

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dedicado, hoje, à Allana,
minha allada sobrinha

05.02.2009

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P.S.:
1) felicitando Clarissa e Lisa,
pelo nascimento de Lis, a sobrinha tão amada!!!

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P.S.:
2) dedicando também à Luna,
filha da Suzana, ex-estagiária do Arquivo TJPE.


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segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Cachaçaria filosófica
















Joseph era um estudante nigeriano da UFRPE, onde trabalhei até 1996. Falava um Português com sotaque carregado, mas de boa qualidade. De boa qualidade também era a cachaça que o negão Joseph, filho de deputado federal em seu país, degustava com frequência. Nossa amizade nasceu na mesa do bar Conterrâneo, sugestivo nome dado pelos alunos da Universidade Rural, egressos, em grande parte, do interior de Pernambuco.

Em uma de nossas conversas etílicas, disse-me o Joseph que seu povo falava Inglês, mas que dezenas de dialetos africanos também eram falados por lá. Fiquei curioso em saber, já que ele falava Português cotidianamente, em que idioma seriam os seus pensamentos e sonhos. Nem lembro agora da resposta do Joseph. Não tem importância. Essa era mesmo uma pergunta etílica, própria de mesa de bar.
Resgatei parte dessa conversa, ao tratar a idéia dessa postagem:

Penso com as mãos, com os olhos, com os ouvidos, com o corpo todo, dizia-me Joseph, citando um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Eu então retrucava: Isso vem ao encontro do Ortega y Gasset, que concebia uma razão vital, em oposição aos que concebem a razão como uma coisa separada da vida e de suas pulsões, escrava das leis da lógica e da matemática:
"como se a razão não fosse uma função vital e espontânea, da mesma linhagem que o ver ou o apalpar!"

Por ser a razão forma e função da vida, como queria Ortega, Joseph diz que não pensa, e sim, vive. Pensamento e vida, para ele, não são excludentes, compenetram-se. São a mesma coisa. Pensar, ou seja, saber a que se ater, o que fazer com a vida e suas possibilidades, é mesmo ir vivendo, pois não somos meros observadores da vida em seu fluir. Fluímos nela.

Essa integração entre pensamento e vida é a primeira forma de integração na natureza, é a ecologia mais profunda, enraizada nas tribos de África, de onde veio o nosso Joseph, e que nos curará da doentia percepção de que estamos fora do meio ambiente.

Joseph estuda Agronomia, sem pressa de concluir o curso. Adora a cachaça pernambucana. E não quer mais voltar para a Nigéria. Quer plantar canaviais em Pernambuco e produzir aguardente natural, em alambiques de barro.
Um dia Joseph vai viver a Agronomia e essa ciência vai ser a sua cachaça. E que importa em que dialeto Joseph irá expressar seu pensamento? Joseph fará a vida funcionar, ou seja, viverá e só. Joseph é um raciovitalista convicto. Se todos pensarem como Joseph, ou seja, viverem integrados à natureza, o planeta estará salvo. E preservaremos, junto com o planeta, a boa cachaça pernambucana...rs
Salve o Joseph!
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Em tempo: o hilário filodoxo Carlinhos do Amparo não perde a piada e quer convidar o Joseph pra criarem a Cachaçaria Filosófica d'Olinda, em oposição ao Café Filosófico, do Paço Alfândega, no Recife. rsrsrs

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A imagem é de um canavial pernambucano.

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