Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, junho 14, 2008

Ranhuras no ventre da baleia



“Agora, erramos, orgulhosos e tristes, de ato vão em ato vão,
modelando vasos fechados e cortando lanças circulares,
não mais portadoras de aguilhão.
Uma besta espantosa, de índole recurva,
nasceu do cansaço universal e impera entre nós:
come voraz a cauda e engole a própria garganta.
Criações e atos perecem: sua respiração interna, letal.”
**************************************(Osman Lins)


Nos últimos dias, venho sentindo a sensação de estar criando um objeto inútil. Não há como escapar desse sintoma neurótico, sendo cidadão de um mundo niilista. Poderia alguém viajar no ventre da baleia sem ser digerido pelas secreções de suas vísceras; sem se corromper, sem sucumbir ante a volumosa força das entranhas do cetáceo?
Sempre acordo tomado pela angústia de ser parte de uma civilização que agoniza lentamente. Sento-me, todas as manhãs, diante dessa máquina e modelo uma estranha máscara mortuária. Folheio Osman Lins e deparo-me com a imagem desse animal autofágico. Somos contemporâneos de uma sociedade entrópica. De um organismo que se despedaça. Uma máquina programada para destruir a si mesma...
Enquanto modelo essa máscara, ouço ao fundo a voz dorida de Edith Piaf. Pela janela vejo a Ilha-sem-Deus. Invade-me as narinas, a maresia do ar. Meus cinco sentidos, as portas da minha alma, repentinamente alertas para essa apreensão lírica do mundo. Um lirismo arrebatador, como um súbito acréscimo da receptividade disto que me circunda. Percebo, apavorado, uma dilatação dionisíaca do real. Eis que o grande Pã me sufoca! Sinto-me diante da perspectiva de ser devorado pelas mandíbulas dessa alimária espantosa, que estertora, enquanto que me arrasta no seu ventre. Do fundo da alma me chega uma oitava de Camões:
“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Não sei por que insisto nesse tema. Minha psicanalista, ao ler a
ELEGIA PÓS-MODERNA, poema que eu acabara de escrever, aconselhou-me para que me ocupasse com amenidades.
— Ninguém se interessará por essas coisas, Poeta, ponderava ela.
Foi o bastante: abandonei seu consultório e nunca mais voltei lá.
Conforta-me constatar, ao ler Osman e Roger Garaudy, essas duas grandes almas, que desde 1968, eles também estavam debruçados sobre o mesmo tema... Nesse tempo, o Green Peace mal dava os primeiros vagidos...
Estaríamos todos criando uma obra inútil e sem sentido?
Pouco me importa! Arranharei, com unhas afiadas, o ventre verde-oliva desse anfíbio. Creio ser esta a única atitude possível a quem navega nessa bizarra embarcação.

***

Fonte da img.:
***
N. do A.:
o texto acima é fragmento de meu romance Bóstrix n'água.

9 comentários:

RENATA CORDEIRO disse...

EU JÁ ESTAVA RUIM, AGORA, DEPOIS DE LER O SEU TEXTO, FIQUEI PÉSSIMA, MEU AMIGO EMPÁTICO. POSTEI HJ SOBRE STARDUST, O MISTÉRIO DA ESTRELA E SOBRE A II PARTE DA DAMA E O UNICÓRNIO. VÁ LÁ E DEIXE O SEU COMENTÁRIO. SE AINDA NÃO PÔS COMENTÁRIO EM PARIS, EU TE AMO, APROVEITE A OCASIÃO.
wwwrenatacordeiro.blogspot.com
não há ponto depois de www
BEIJOS, CADA VEZ GOSTO MAIS DE VCS
RENATA MARIA PARREIRA CORDEIRO

lula eurico disse...

Amiga, a alegoria do profeta Jonas, extraída do seu contexto original, que é o das escrituras hebraicas, e retomada nos nossos dias, não deve nos deprimir, mas, pelo contrário, deve servir de alerta para que enfrentemos com energia as causas da agonia de nosso planeta azul.
Perdoe-me se te fiz algum mal.
Abraço fraterno.

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, poeta, querido amigo, se experimentar, ou poetar, é ter consciência de que as instituições e valores não são nem transcendentais, nem a-históricos, nem naturais, e que, portanto, são mutáveis; se poetar é investir nesse argumento, temos, por outro lado, a sombra do niilismo e do cinismo, a nos emparedar, ou simplesmente a nos dizer que não é possível, que não temos como mudar nada; que temos simplesmente que cultivar nossas diferenças em guetos, ou reproduzir o mudo besta, ou ou ou ou. sejamos crédulos, dizia oswald de andrade, no "manisfesto pau-brasil", crédulos e ousados, e poetemos, sim, oum outro mundo.
meu abraço e obrigado pela visita
luis

Jacinta Dantas disse...

É meu caro,
também compartilho dessa agonia. E vou, sigo, dando meus passos. De certeza, sei que sempre haverá e ficará A POESIA.
Beijos

Dauri Batisti disse...

Não acredito que sua psicanlista disse isso? Caramba!

lula eurico disse...

Amigo, Dauri, nem eu acredito ainda. Mas tomei uma atitude e até hoje não voltei mais lá. E olhe que ela já deve ser Mestra.
Bem, na realidade ela queria, de forma simplória, me ajudar a ser mais otimista. rsrsrs Dou um desconto pela empatia.

Loba disse...

Interessante a sua leitura do ventre da baleia. Na verdade, deve ser esta a trudução correta.
Uso muito este espaço para definir as minhas transformações pós-quarenta. Pra mim, a agonia do estar lá, do debater-se na escuridão é a fase de aprendizagem, a fase que precede o renascer.
Nada a ver o que eu disse...rs...
Um beijo, viu?

lula eurico disse...

Eu não diria, amiga Loba, a tradução correta, mas uma das possíveis traduções, já que o texto bíblico é capaz de produzir milhares de leituras. É o texto polissêmico por excelência. Abraçamigo.

Canto da Boca disse...

Penso que o mundo é o Jonas pós-moderno, às avessas, não apenas temerosos do desconhecido, mas todos temendo-se a si mesmos.
Sou leitora ávida de Osman Lins, não saem de minha cabeceira: Avalovara e Nove, Novena.
Grande abraço.
;)