Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sexta-feira, maio 16, 2008

Pra não dizer que não falei das dores...





















Peso aos Habitantes dos Outeiros, no Ano da Graça de 1993

"Então disse eu: Melhor é a Sabedoria do que a Força,
ainda que a sabedoria do pobre é desprezada,
e as suas palavras não são ouvidas."
** ****** (Eclesiastes IX, 16)


Quando o mais frio dos monstros subir essas ladeiras,
criatura abstrata e furiosa,
escalando escadarias,
salpicando estrelas sanguíneas,
pelas escarpas de vossos temores;
rompendo os umbrais desses frágeis casulos,
cobertos de zinco e desonra;
quando isso ocorrer, sêde sábias serpentes:
olhai os vossos mortos distraídos
por saber que nos morros mal nutridos
é sempre relativo todo mal.


Quando roçarem vossos dorsos,
sibilantes foguetes,
cadentes projetis,
troando, zunindo, fulgindo,
rugindo, retumbantes,
nesse absurdo convívio entre estampidos e batuques,
um trom de artilheria em céus pirotécnicos,
tumulto e uma teratológica presença;
pisai os vossos corpos distraídos,
por saber que nos morros invadidos
é sempre relativo todo mal.

Acautelai-vos, ó gente esfarrapadamente feliz,
que as barreiras da história não tem arrimo,
que vossos gritos sumirão, inúteis, no olvido das gentes.
Cavai trincheiras nas fendas da alma, se há viva alma,
barricadas ao monstro nietzcheano,
barricadas de silêncio e dor.

Que tendes com essa guerra dos titãs?
Cá desse lugar distante vos contemplo,
(de minha escrivania no Planeta dos Macacos)
cúmplice de vossas cavilações ladinas,
arrastões, pequenos lances,

dribles garrinchas na fome e na miséria,
astúcias de quem vive no espaço desse avêsso:
esses casebres vergados à beira do abismo,

taturanas de anônimas latas no chafariz,
bordas amassadas de marmitas vazias.



Quando o mais frio dos monstros chegar
buscai de Deus as linhas tortas,
ó cidadãos dos outeiros da Vila Real de São Sebastião!
Enquanto não sobe as ladeiras o anjo destruidor,

girai roletas russas que a miséria envilece,
jogai os dados que a miséria afrouxa os laços.
Deixai que lutem os deuses do absurdo
e que seus cadáveres voltem ao Pó de onde vieram.
Quando esse monstro chegar guardai silencio,

guardai vossas crianças e segredos.


Lembrai do bom conselho, que vos dou, de graça:
pisai sobre os valores sem sentido,
por saber que nos morros esquecidos
é sempre relativo todo mal...

Eurico
1993

Fonte da imagem:
http://img46.imageshack.us/img46/2279/baianord7.jpg

9 comentários:

Dora disse...

Prá não dizer que não falei das...dores, é mais direto que "falar das flores".
O "Chão de Estrelas" é agora atapetado de "estrelas sanguíneas", nos morros que não são só mal-vestidos, são também "mal nutridos". Uma "ode" aos oprimidos, com o coro dos cantos daqueles que se "habituaram" (?) ao mal relativo.
Os batuques das celebrações são substituídos por sons de projéteis(que ferem). E ainda tem gente que é "esfarrapadamente feliz"...
Os pequeninos do morro não fazem parte da luta dos titãs-chefões que se enriquecem com a miséria daqueles.
Nos morros há o "silêncio dos inocentes".
Poema que enxerga na escuridão...
Beijos.
Dora

lula eurico disse...

Grato pela sempre bemvinda visita, Dora. Creio que o que houve com os teus comentários na outra postagem tem a ver com a moderação, que me vi obrigado a fazer por conta da pirataria que anda a navegar nesse mar virtual.
Abraçamigo.

Unknown disse...

Seu poema é forte , é preciso mesmo falar das dores...cabe ao poeta ,pelo menos este grito agônico pelos inocentes , que bradam e gemem no silêncio do medo.
Bom estar por aqui, cada palavra é funda e é profunda:_RASGA NOSSA INDIFERENÇA . nanamerij

Jacinta Dantas disse...

Do meu jeito "caseiro" tento falar das (minhas)dores. Mas você, com maestria, me parece fazer um clamor, chamando a atenção para a existência da dor social, universal. Isso penso.
Beijos

lula eurico disse...

Jacinta, amiga, vc é generosa comigo. O meu jeito também é caseiro, só que visto o texto com roupas de "sair" e fico em casa.
O que gosto mesmo é de visitar o teu oásis, lá no Florescer.
Abraço fraterno e amigo.

Yara Souza disse...

Estrelas mortais
chovem no morro.

E cá teus versos
também ferem.
Um pouco eu morro.

Nessas guerras
todo mal é relativo...

RENATA CORDEIRO disse...

Isso é muito bonito.
Postei um agradecimento a todos que me visitam. Vá là:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um beijo,
Renata Cordeiro

Loba disse...

Falar das dores é tão necessário qto falar de amor. E qdo a poesia vira instrumento de denúncia ela ganha mais uma grande e importante significância.
Eu admiro muito (e vc sabe) o poeta que vc é. Mas (vc sabe tb) tenho uma certa dificuldade pra entrar na sua poética (talvez por falta de sensibilidade, quem sabe?). Mas este poema está escancarado. É o olhar aberto do poeta.
Lindo!
Beijos meus.

lula eurico disse...

Obg, Lobinha, vc é sempre generosa.
Sim, escancarado até onde consigo. Gostaria de ser cristalino como vc.
Abraçamigo.