Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, abril 26, 2008

Mel/a/nina

imagem Google

E
s
c
o
r
r
e
o mel
à flor da pele demerara, açúcar preto, mascavo
Mel
Melaço
Melado
Mel novo
Mel de engenho: terra roxa massapê terra de cana
caiena caiana cana de açúcar
moenda garapa tropicana
terra onde mana
mel ( e leite) e a sacarose morena
melíflua voz de veludo melosa
pele de mel demoiselle cubista
lábios de mel língua doce
lamber teu céu linda noite
caldo de cana caiena favos de mel
A tez de fruta mestiça malícia cajus compotas
Sapotis cristalizados
E toda a doçaria colonial
Água na boca
Desliza mel na língua
portuguesa e um gosto de infância
lembrança de um confeito chamado nego bom.
Noite na pele negra rara demerara
A lua açúcar céu amorenado mel
Enamorado
Melado
Doce na boca,
delícia
no tacho
de bronze,
desliza
na cuba
daqui e de Habana:
de niña/mujer;
de sinhá/menina.
de mel, melanina.
Tua noite nos ilumina...
********
Eurico
meados de 2000



terça-feira, abril 22, 2008

Ainda o efeito poético



e pra que este blog não tenha fixação no umbigo do autor...
eis um exemplo de lirismo, ou de súbito acréscimo de receptividade:




Terra
Caetano Veloso


Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim coberta de nuvens
Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Ninguém supõe a morena
Dentro da estrela azulada
Na vertigem do cinema
Mando um abraço pra ti
Pequenina como se eu
Fosse o saudoso poeta
E fosses a Paraíba
Terra, Terra,
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?
Eu estou apaixonado
Por uma menina terra
Signo do elemento terra
Do mar se diz terra à vista
Terra para o pé firmeza
Terra para a mão carícia
Outros astros lhe são guia
Terra, Terra,
Por mais distante
O errante navegante
Quem, jamais, te esqueceria?
Eu sou um leão de fogo
Sem ti me consumiria
A mim mesmo eternamente
E de nada valeria
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria
Diferente das estrelas
Terra, Terra,
Por mais distante
O errante navegante
Quem, jamais, te esqueceria?
De onde num tempo num espaço
Que a força mande coragem
Pra gente te dar carinho
Durante toda a viagem
Que realizas ao nada
Através do qual carregas
O nome da tua carne
Terra, Terra,
Por mais distante
O errante navegante
Quem, jamais, te esqueceria?
Nas sacadas dos sobrados
Da velha São Salvador
Há lembranças de donzelas
Do tempo do imperador
Tudo tudo na Bahia
Faz a gente querer bem
A Bahia tem um jeito
Terra, Terra
Por mais distante
O errante navegante
Quem, jamais, te esqueceria?
Terra...






Fonte do texto:
http://www.revista.agulha.nom.br/velo.html#terra

quarta-feira, abril 16, 2008

Lirismo reflexivo: Ecos do Eco



Ecos do Eco ou A Borboleta
comentário do Carlinhos do Amparo


Em seu Pós Escrito ao Nome da Rosa, Umberto Eco,
com requintado bom humor, sentencia que
o autor deveria morrer ao concluir a sua obra,
só para que não pudesse comentá-la,
tampouco, interferir nas interpretações dos seus leitores.
Por isso, creio eu, não deve o artista intentar
fazer a crítica de sua própria obra, por temerária e inútil.

No entanto, nessa mesma obra, diz Eco,
que não há óbice em explicar como e por que se escreveu.
Acerca do processo criativo se pode tratar sem receios.
Pois é exatamente isso que faz Eco no pós-escrito da sua obra magistral:
Interessante o trecho sobre A Filosofia da Composição,
em que descreve como e por que Edgar Allan Poe
arquitetou a estrutura de O Corvo.
Relata, inclusive, como Poe enfrentou aquela luta mais vã, drummondiana,
para alcançar as palavras com as quais, finalmente,
chegaria ao que denominou como sendo o efeito poético da escritura.

E o que seria esse efeito poético do Edgar Allan Poe?

Bem, o efeito poético, segundo Eco, no mesmo pós-escrito,
pode ser definido como:
“A capacidade que tem um texto
de gerar leituras diversas,
sem nunca esgotar-se completamente”.


Quem escreve, diz Eco, quem pinta, quem compõe uma sinfonia,
sabe que deve desenvolver algo do imaginário.
A obra pode emergir de elementos iniciais obscuros, pulsionais, obsessivos;
às vezes, não mais que de uma vontade ou de uma lembrança.
O artista, então, mergulha na matéria com a qual trabalha,
(matéria que tem suas próprias leis naturais,
incluindo a lembrança da cultura em que está embebida,
o eco da intertextualidade
),
para moldar sua obra, isto é, capturar, com palavras, tintas, sonoridades,
o efeito poético, e assim plasmar um insólito objeto de gerar interpretações.

Gilberto Freyre , em ensaio de 1968, intitulado
observa que, Cervantes, ao produzir o Dom Quixote,
trabalhava à revelia de quase todas as convenções literárias da época,
juntando um pouco de velhas crônicas, de façanhas heróicas,
muito de pitoresco, e até de vulgar ou chulo,
colhido diretamente da boca do povo, para
“intensificá-los com efeitos sociologicamente simbólicos
e psicologicamente representativos(...)
numa intensificação de que só são capazes os poetas,
que, ao contato direto com a vida, juntam o poder,
ao mesmo tempo analítico e lírico, de compreendê-la,
de dramatizá-la e de interpretá-la”.

Essa intensificação freyreana dos efeitos simbólicos e representativos
e o efeito poético que Umberto Eco tomou emprestado a Poe,
lembram-me algo do que diz G. M. Kujawski,
em seu artigo Lirismo e Análise da Natureza, datado de 1979:

“Adotamos aqui o lirismo como sendo
um método fenomenológico, e rigorosamente
descritivo, de abordar a natureza”.


Descreve Kujawski a experiência de lirismo como sendo
“um súbito acréscimo de receptividade”,
sentimento que parece nos dominar ao vermos, por exemplo,
uma rosa florindo solitária,
sua rubra coloração,
sua carnação aveludada,
a delicadeza do seu desenho;
ou mesmo quando o mar,
revolto ou em calmaria,
nos toma de assalto, e
invade nossas pupilas,
“em toda a sua pureza fenomenológica”.

Pois bem, o efeito poético, que deve habitar uma obra de arte,
se aproxima desse maravilhamento/estranhamento,
dessa surpresa do ser diante da rosa,
dessa quase hipnose diante da coisa viva.

Assim, um poema, obra de arte plurissignificativa,
deve trazer, engastada em si, essa estesia,
fluindo como algo quase musical.
O fulgor dessa presença lírica deve provocar em nós certa inquietação,
certo choque com a patência da coisa escrita,
ou seja, a perplexidade em face da evidência de que
o poema existe, coisa única,
que o poema está-aí, quando poderia não-estar...
Como acontece com esse A Borboleta,
do poeta e compadre Eurico, que abaixo lanço sob vossos olhos:

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Patência nº 1: A Borboleta

Borboleta!...
Ó Borboleta!...
Tu também foste tecida
com milhares de partículas indivisíveis como eu?
E de onde vem essa tua multicolorida atomicidade?

Somos ambos filhos da larva e da morte...
Mas eu, absolutamente, não te sou.
E tu, verdadeiramente, não me és.

Tento palpar com as pupilas
o teu saltitar amarelado, flor em flor,
mas apenas esvoaço em ti, amareladamente.

Surpreende-me o subitâneo choque com o patente.
Isso, assombroso.
Isso, apodítico.

É evidente:
Nós somos!

Inexoravelmente:
Nós somos!

Nós somos, alada amiga!

Eurico
Pina, 22/10/1992



Nota: O poema é antigo, mas o comentário é novíssimo,
pois o meu compadre Carlinhos do Amparo
veio ao blog só para homenagear, com esse texto,
às minhas amigas Euza, Dora, Jacinta, Ilaine e Dira.
E também para reverenciar
a Dom Luís Eustáquio Soares, nosso mestre e amigo.

Luiz Eurico de Melo Neto
Recife/Olinda

Abril/2008

sexta-feira, abril 11, 2008

Eu-lírico nº 3 (reedição-formato blog)



capa do Eu-lirico 3 - meados de 1994



Nota: cada edição do meu zine-collage trazia um poema,

Neste número 3, aparece também um posfácio.



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Mitopoese I: o Unicórnio



...Jaz a Noite Imensa sobre o mangue...

A Cidade surge antes,
das enchentes, das vazantes
fundação amorfa, sem face, vazia...

A Cidade emerge, ser eqüestre,
Alça as patas, veste a ventania,
Galopa vadia, égua numinosa.

A Cidade avança,
Besta airosa,
E aponta para o Atlântico o seu chifre calcário.

A Cidade é vária:
Puta dos batavos, marranos, mascates.

Múltipla, mistério:
Vila pescadora com matrizes míticas;
Titãs com tarrafas, jêjes argonautas,
Ninfas pomba-gira, reis iorubás.

A Cidade é anfíbia:
Ilhas de enxurradas,
Sertões arribados sobre palafitas.

(ouve-se o relincho de uma gente aflita...)

Antes, muito antes,
A Cidade dá cria (protopoesia?)
Sobre os arrecifes que detém o mar.

Vaza a Noite um imenso alfanje:
Ouve-se um vagido.
O sangue, rubro veio, escorre

e tinge o umbigo da pedra
do Reino do Amanhã

(ouve-se, em alarido, a turba;
ouve-se um trotar...)


Eurico
1994


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UM BREVE COMENTÁRIO

por Carlinhos do Amparo




O poeta não filosofa, confunde.
A ele não cumpre investigar o Universo, nem a História,
mas entregar-se amorosamente às forças do sonho,
mergulhar no aórgico, na palpitação jubilosa das origens do ser.
E a origem do ser, como dizem os doutos, dá-se na Poesia.
Qualquer dos doutos: Fichte, Schelling,
ou o nosso, brasileiríssimo, Vicente Ferreira da Silva.
"O mito é em substância Poesia", diz-nos um deles.
"Não é a história que faz o mito, mas o mito é que faz a história", diz-nos um outro.
Pois bem, Mitopoese I: o Unicórnio é o encontro poético
com as matrizes míticas, com a Noite Imensa,
com o Antes, com a Criação.
Em uma dionisíaca revelação,
o poeta foi buscar as fundações mitopoéticas
da Cidade que o trouxe ao Ser.
Confusos?
Não é filosofia. É Poesia.
Poemem-se.

(Carlinhos do Amparo é escritor olindense.)


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À GUISA DE POSFÁCIO:



Rompo um insulamento de vários anos

em que vivi entre leões osmanianos

ou na clausura das efabulações.

Trago os fantasmas, grifos voláteis

que me tocaiam nas entrelinhas.

Abro a janela: EU-LÍRICO

por ela escapa o imaginário,

meu arsenal de indagações.

Todo poeta traz o flanco nu

e adentra a arena.

Essa é a senha: não são moinhos, são gigantes!

Que se derreta a cera dessas asas.

O que me importa é essa luz, é o Sol.


Eurico
1994



domingo, abril 06, 2008

Cálix


De pé sobre as águas
Ergo até a fronte, em brasa,
A Palavra.
Seu hálito me invade
E acende a porta, a estreita porta,
Vazada sobre a noite dos tempos.
Mesmo quando sobrevoa-me em círculos
A ave do ocaso:
Nada dizer.
Nenhum pensar.
Nada ser.
Chorar sobre a cidade agônica
E olhar-me de fora das muralhas.
Tenho um centro ou dilato-me centrífugo?
Todos os ninhos estremecem vazios.
Estou sem mim.
Mas há címbalos.


Luiz Eurico de Melo Neto

Poema publicado em http://www.blocosonline.com.br/
por gentileza da amiga Leila Míccolis - Maricá-RJ

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Imagem:
Pai libanês, com criança nos braços, em 13/08/2006.

Fonte:
http://www.freefotolog.net/fotos/422784454.jpeg
www.freefotolog.net/revolucionar/1335309