Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quarta-feira, outubro 24, 2007

Lirismo reflexivo

Retrato de Mario de Andrade por Tarsila do Amaral

"Poesia é, a meu ver, uma organização consciente do lirismo subconsciente."
M. de Andrade

Sobre o lirismo no pensamento marioandradino, achei essas interessantes citações, no blog Ensimesmudo.blogspot.com – parapoucos (postagem de 20/08/2004):


Não tão óbvio

Um pouco de teoria?

Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada.

***

A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...

***

Canto da minha maneira. Que me importa se não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós, por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei de achar também algum , alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos.

***


Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha. Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem nº1. Quem não souber urrar não leia Ode ao burguês.


***


O "Prefácio interessantíssimo" foi publicado como introdução aos poemas de Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade. Este "prefácio" tem a importância de um manifesto que revela alguns ideais do Modernismo.

Fonte:
http://ensimesmudo.blogspot.com/2004_08_01_archive.html

sábado, outubro 06, 2007

Carta aos Mortos






















Topei com esse poema do Affonso Romano de Sant'ana, ao assistir o vídeo Cemitério da Memória. O texto é muito bom. Então resolvi trazer pro blog:


Cemitério da Memoria
(Em tempo: transcrevi, abaixo, todo o roteiro do curtametragem, que se pode assistir no Portacurtas Petrobrás, clicando no link ao lado)

Diálogos do curta :

“Porque escrever memórias é um ajuste de contas do eu com o eu…”
Pedro Nava
Ontem, Hoje e Amanhã
apresentam

cemitério da memória - fragmentos da vida cotidiana:

sábado 1930

Há cidades que não vem à tona
ficam entre nós, eternamente submersas
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domingo 1940

Herói de batalhas de confete
e lança-perfume,
as únicas batalhas que admiro
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segunda-feira 1950

Já não és a cidade confidencial
e borralheira de outrora…
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terça-feira 1960

Inverte-se enfim a arquitetura,
onde havia pedra
resta agora outra figura:
Ruina em que o oceano
se ajoelha e bate, eternamente bate,mas onde jamais se apura
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quarta-feira 1970

É preciso parar os ponteiros
no fim do sonho, enquanto é tempo
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quinta-feira 1980

Locução:
Carta aos Mortos

Este poema foi recitado na voz de Tônia Carrero no CD "Affonso Romano de Sant'Anna por Tônia Carrero" da Coleção "Poesia Falada".

Amigos, nada mudou em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
As guerras não terminaram
E há vírus novos e terríveis,
Embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
Tomba morto por questões de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
E como sempre, mulheres portentosas
Nos seduzem com suas bocas e pernas,
Mas em matéria de amor
Não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
Seis meses ou mais, testando a engrenagem
E a solidão.
Em olimpíada há recordes previstos
E nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
Com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
Relemos o Quixote, e a primavera
Chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
Se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
Ou toma a fresca da tarde,
Mas temos máquinas velocíssimas
Que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
E a formação das galáxias
Não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
Países se dividem
E as formigas e abelhas continuam
Fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
Discutimos futebol na esquina
Morremos em estúpidos desastres
E volta e meia
Um de nós olha o céu quando estrelado
Com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
Continua a achar
Que vive no ápice da história.

Lettering:

Quem não encontrar poesia no infinitamente pequeño jamais a encontrará no infinitamente grande sexta-feira hoje
A memória é uma construção do futuro
mais que do passado
Aqui jaz um século que se chamou moderno e olhando presunçoso o passado e o futuro julgou-se eterno; século que de si fez tanto alarde e, no entanto, já vai tarde; um século filmado que o vento levou…
“O memorialista é a forma anfíbia de historiador e ficcionista…”
Pedro Nava
O documentarista é, invariavelmente, um curioso.

Para Rachel Jardim e Dziga Vertov
e todos aqueles que admiram o século em que a lua deixou de ser dos namorados...
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Eurico
out/2007
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Fonte da img.:
http://catedral.weblog.com.pt/arquivo/poesia_ilustrada/index0

terça-feira, outubro 02, 2007

Por que Eu-lírico?






Transcrevo aqui um brevíssimo comentário do Carlinhos do Amparo, extraído do zine Eu-lírico, nº 6:


Lirismo, sim. Mas não lirismo comedido: pura contemplação da natureza ou catártica expressão das emoções.
Lirismo, sim. Porém centrado em uma analítica da existência, se isso lá é possível. Algo como o que nos fala G. M. Kujawski:
“Adotamos aqui o lirismo como método fenomenológico, rigorosamente descritivo, para aprofundar nosso conhecimento da natureza”. (Perspectivas Filosóficas, 1983).
O poeta tropeça com o estar-aí da coisa. Qualquer coisa: um pássaro, uma pedra (como no célebre poema drummondiano), um recorte qualquer da realidade. E esse choque com a patência da coisa exige a mediação lírica, o assombro, o maravilhamento, a subitânea iluminação do ser. Nesse instante, a Palavra se torna instrumento de reaproximação com o derredor, a circum-stantia, a realidade tal com a encontramos.
Uma atitude irrevogável e consciente presentifica-se no eu enunciador do poema, o eu-lírico: a atitude de auscultador, não de estrelas, como em Bilac, mas auscultador da Existência.
O poema não responde à pergunta: por que o pássaro está aí em vez de não estar?
O poema é o pássaro, vôo repentino, é a coisa no fulgor de sua presença, é o impacto como o essencial. Mas o poema é, antes, o fascínio órfico, o lírico palpitar do real...

***

Transcrevo também o meu poemeto (nem tão rigorosamente descritivo, tampouco fenomenológico, rsrsrs) que originou o comentário acima, naquela edição de 12 anos atrás, do zine Eu-lírico:



Um pássaro de seis asas...
Embora o rugir mecânico das coisas,
Um pássaro de seis...
E a urbe e o orbe
E o universo se desdobre,
Um pássaro...
Atávicos urros na estação metroviária neolítica,
Um passarinho...
(dilata-se o real)


Eurico
Jun/1995
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