Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, agosto 09, 2007

Processo criativo em Rilke


"Ah, mas versos significam muito pouco se escritos cedo.Devia-se esperar, reunir sentido e doçura numa vida inteira, se possível bem longa, e depois, bem no fim, talvez se conseguissem dez versos bons.Pois versos não são, como as pessoas imaginam, sentimentos(a esses, temos cedo demais) - são experiências. E por causa de um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer bichos, é preciso sentir como voam os pássaros e saber com que gestos flores diminutas se abrem ao amanhecer. É preciso poder recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados,e despedidas que há muito sentíamos chegar - dias da infância, ainda não explicados os pais que tínhamos de magoar quando nos davam alguma alegria e não entendíamos(era uma alegria pra outra pessoa), doenças de crianças que começavam de modo tão singular, com tantas e tão profundas transformações, dias em quartos silenciosos e isolados, e manhãs no mar, o mar sobretudo, mares, noites de viagem rumorejando no alto e voando com todas as estrelas - e poder pensar em tudo isso ainda não é suficiente. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, nenhuma semelhante à outra, gritos de mulheres dando à luz, leves e alvas parturientes adormecidas que se tornavam a fechar. E também é preciso ter estado com moribundos, sentar-se juntos aos mortos no quartinho com a janela aberta, e aqueles ruídos intermitentes.E também não basta ter recordações.É preciso saber esquecê-las quando são muitas , e ter a grande paciência de esperar que retornem por si. Pois as lembranças em si ainda não o são. Só quando se tornarem sangue em nós, olhar e gesto, sem nome, não mais distinguíveis de nós mesmos, só então pode acontecer que numa hora muito rara se erga do meios delas a primeira palavra de um poema."


Rainer Maria Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge,
Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1979, p. 14e 15


(Isabel, grato pelo email com o texto acima).


Eurico
09/08/07