Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

quinta-feira, setembro 21, 2006

Orfeu nordestino




Jorge de Lima, o inventor de Orfeu

Só a poesia une os extremos
e numa mesma frase alberga
imagens tão díspares,
como nestes versos de Caetano:

"...um amor assim violento,
quando torna-se mágoa,
é o avêsso de um sentimento:
oceano sem água"


Embora o mar se esconda em léguas de vazante
antes de virem as terríveis tsunamis,
esse deserto marinho seria impossível
sem a presença órfica da poesia.

Essa presença órfica transcende todos os limites em Jorge de Lima,
que reinventa a língua e desafia os deuses, como Orfeu,
criando um universo novo e só possível pela poesia,
pela punjante e criadora força mitopoética desse alagoano,
cujo fascínio transcrevo em poucos sonetos, aqui neste blog lírico,
que fica invadido do mais puro e profundo lirismo!
Aqui estão os cantos que escolhi em Invenção de Orfeu:



V


Não esqueçais escribas os somenos
As geografias pobres, os nordestes
Vagos, os setentriões desabitados
E essas flores pétreas antilhanas.

Há nesses mapas números pequenos,
Uns tempos esbraseados para pestes
E muitos ossos tíbios chamuscados,
Faces perdidas, formas inumanas.

Não esqueçais, escribas, ir contando
Nas cartas, o que está aparente, ao lado
Das invenções em seu fictício arranjo.

E os pequenos orgulhos, sempre quando
Quereis fugir ao mundo persignado,
Ó impenitente e despenhado arcanjo.


Jorge de Lima
Canto Primeiro, Quinto soneto.



VII


Estão aqui as pobres coisas: cêstas
Esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
Arrebentadas, abas corroídas,
Com seus olhos virados para os que

As deixaram sózinhas, desprezadas,
Esquecidas com outras coisas, sejam:
Búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
Penas de ave e penas de caneta,

E as outras pobres coisas, pobres sons,
Coitos findos, engulhos, dramas tristes,
Repetidos, monótonos, exaustos,

Visitados tão só pelo abandono,
Tão só pela fadiga em que essas ditas
Coisas goradas e orfãs se desgastam.


Idem
Quinto Canto, Sétimo soneto



VIII


A estepe e a noite se deitaram juntas,
Paralelas as asas sobre as asas,
Ambas com as solidões, ambas defuntas,
E entre elas, sós, ardentes como brasas,

Espreitando à direita e à esquerda o estrito
Espaço ínfimo que entre as duas corre,
Correm cruciados como o imenso grito,
Imenso grito mudo de quem morre,

Os olhos renegados de quem está
Esperando, esperando. Que esperando?
Entre a estepe e a noite olham olhos, rente

Às trevas opressoras, olhos que a
Estepe e a noite juntas se estreitando
Apagam misericordiosamente.

Idem
Quinto Canto, Oitavo soneto.


XV


Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
E a comida que acaso desejares,
E algum poema que ilumine os ares
Menos que a luz malsã dessa candeia.

Aqui terás o peixe desses mares
E o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?

Como te chamas vida da outra vida,
Espelho noutro espelho transmudado,
Lume na minha luz anoitecida?

Serás o dia à noite do outro lado
De meu ser que nas trevas se apagou?
Ou serás qualquer lume que não sou?


Idem
Segundo Canto, Décimo-quinto soneto


XXVI

Qualquer que seja a chuva desses campos
Devemos esperar pelos estios;
E ao chegar os serões e os fiéis enganos
Amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
E os ninhos imortais forem vazios,
Há de haver pelo menos por ali
Os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos
E ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas
Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.


Idem
Primeiro Canto, Vigésimo-sexto soneto.


Pequena Biografia
copiada do © Projeto Releituras Arnaldo Nogueira Jr


Jorge Matheos de Lima nasceu em Alagoas, em 3 de abril de 1893. Fez os primeiros estudos em sua cidade, União, e depois em Maceió, no Colégio dos Irmãos Maristas. Estudou Medicina em Salvador, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre os serviços de higiene na capital federal. Ainda estudante de Medicina, publicou seu primeiro livro, XIV Alexandrinos (1914). Após ter se formado, retornou a Maceió. Sem jamais ter abandonado a Medicina, lecionou na Escola Normal Estadual da cidade, chegando a ser diretor. Ocupou outros cargos públicos estaduais, como Diretor-Geral da Instrução Pública e Saúde e Deputado, além de manter constante seu interesse pelas artes plásticas.

Em 1930, transfere-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro, onde clinica e leciona Literatura Brasileira, nas Universidades do Brasil e do Distrito Federal. Em 1925 foi eleito vereador, ocupando, três anos mais tarde, a presidência da Câmara, no Rio de Janeiro.

Assinalou a polimórfica trajetória com muitos e sucessivos rótulos estéticos: modernista, regionalista, nativista, “cantor da poesia negra e do folclore”, neo-simbolista, místico-realista, “poeta cristão.” ·

Sua obra mais conhecida, "Essa negra Fulô", foi publicada em seu livro "Novos Poemas".

Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1953.

PRINCIPAIS OBRAS

Poesia

XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos Poemas (1929); Poemas Escolhidos (1932); Tempo e Eternidade (1935) - em colaboração com Murilo Mendes; A Túnica Inconsútil (1938); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950) - inclui produção anterior, juntamente com Anunciação e Encontro de Mira-Celi; Invenção de Orfeu (1952); Castro Alves - Vidinha (1952).

Romances

Salomão e as Mulheres (1927); O Anjo (1934); Calunga (1935); A Mulher Obscura (1939); Guerra dentro do Beco (1950).

Ensaios, história, biografias

A Comédia dos Erros (1923); Dois Ensaios (1929) [Proust e Todos Cantam sua Terra]; Anchieta (1934); Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien (1934); História da Terra e da Humanidade (1944); Vida de São Francisco de Assis (1944); D. Vital (1945); Vida de Santo Antonio (1947).

Um comentário:

Rejane Martins disse...

Bah... não acredito que eu cheguei aqui num dia como hoje! Num sábado com tempo de ruminar palavras e conhecer gente como Jorge de Lima, na tua escolha. Eu te agradeço, de novo e invariavelmente, há coisas que são eternas.
Recebe meu abraço nesta manhã, Eurico, neste soneto XXVI que não para de ecoar.