Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

sábado, setembro 09, 2006

MANUAL DE LITEROGRAFIA SEM MESTRE


















sub-título: Exercícios de mergulho
Editora do Autor
Recife
05/08/2004


Uma epígrafe

O ato de escrever é um ato de apreensão da realidade;(...) a escrita viabiliza
o conhecimento de si e do mundo(...)
escrever é uma epifania, um ato de criação

*************************************Affonso Romano de Sant’Anna



Programa Introdutório


I - Esse estranho ofício: a literografia

II - Onça que lambe as feridas, ou Cobra que morde o próprio rabo

III - Alguns mergulhos osmanianos



I - Esse estranho ofício: a literografia

O escritor pernambucano Osman Lins(1924-1978), em seu Marinheiro de Primeira Viagem, narra um curioso diálogo que travou com um funcionário do guichê em que se que autorizavam os passaportes para a Europa. Esse incidente, por ilustrativo e pitoresco, servirá de pórtico a esse despretensioso curso de literografia sem mestre:

UM BUROCRATA

- Profissão?
- Escritor.
- Não pode ser. Não é isto que consta dos documentos do Imposto de Renda.
- Naturalmente. Não se paga imposto de renda como jornalista ou escritor.
- Tenho de por “bancário”. O senhor não trabalha em Banco?
- Trabalho.
- Quer dizer que é escritor-amador.
- Existe rádio-amador, mas não escritor-amador. Ou se é escritor, ou não se é.
- Mas se o senhor trabalha em Banco, tenho de por “bancário”.
- Não é como bancário, e sim como escritor, que viajo. A maioria de meus possíveis contatos, na Europa, será de natureza artística e literária. Só vou entrar em Banco para trocar dólares. Como cliente. Não quero que o senhor ponha “bancário”. Pode prejudicar-me. Já perdi uma bolsa de estudos porque, nos documentos, constava que trabalho em Banco.
- Pois eu só posso por “escritor”, se o senhor provar que é escritor.
- Trago-lhe os livros.
- Ah, não servem.
- Como é que não servem?
- É preciso trazer um documento, assinado por duas pessoas, atestando que o senhor é escritor.
- Selado?
- Perfeitamente. Com firma reconhecida.
- Então os livros não servem?
- Claro que não, meu senhor. Livro não é documento”
(LINS, 1980: p. 42)

Tenho um grande amigo osmaniano, chamado Carlinhos do Amparo. O osmaniano, aqui, é parecido com os apelidos que se dão aos seguidores deste ou daquele filósofo ou cientista famoso. Há os freyreanos, os heideggerianos e outros fulanos. O Carlos Pequeno do Espírito Santo, morador do Amparo, Olinda, é estudioso do Osman Lins, como ele próprio diz, por necessidade visceral. Ou estudava ou se danava. Carlos, auto-didata, é o cão chupando mangas, ou seja, um inventor de tudo quanto não presta. Poeta, ficionista, tocador de violão, amante e defensor das meretrizes das ladeiras carcomidas das Olindas, como ele costuma chamar a cidade-patrimônio. Dentre outras coisas, ele é o criador do termo literógrafo, que considera como o mais adequado para designar a profissão de ficcionista ou de poeta, que é a dele desde a mais tenra idade. Tudo começou quando, aos trinta e poucos anos, ou seja, uns vinte de escrevinhador, resolveu fazer vestibular de Letras, para uma pequena Faculdade aqui da Mauricéia-mais-que-desvairada. Sua intenção: formar-se escritor. Ficou apenas na intenção. Além das farras homéricas (aliás, por que as farras são homéricas? alguém sabe?) nos bares das vizinhanças da Faculdade, pouco conseguiu aprender. A Faculdade de Filosofia do Recife ficava ali na Avenida Conde da Boa Vista, paraíso dos barzinhos, como o Mustang, histórico bar dos subversivos de todas as tendências, nos anos 70, hoje, 2004, tendendo mais para bar GLS, do que de serões etílico-politizados. Nela, na Fafire, pouco aprendeu. Além das discussões etílicas, teve algumas noções enfadonhas de sintaxe e de latim, teorias literárias abúlicas, tudo em aulas sonolentas, excetuadas as de Filosofia, com um certo prof. Aderval, também poeta e dos bons. Com um agravante: à época: (isso foi lá pelos idos de 1989-90) nada de Osman Lins, nada de Carrero, nem de Antonio Torres ou Raduan Nassar, para não ficar só nos nossos. Eu era seu colega de turma e, a bem da verdade, citaria uma gaúcha, que lecionava Brasileira, e a mineira, se não me engano, de Linguística, como boas mestras. Fora disso, aquilo lá era apenas um cursinho de formação de professores de gramática e literatura, e nada mais: palavras do Carlos. Faltava vida, faltava criação, faltou-nos o ar...demos no pé.
E é para o Carlinhos do Amparo, para os escritores e poetas dessa cidade, marginalizados nos becos da fome, nos guetos litero-alcoólicos da cidade maurícia; é para nós que começo a erigir esse Curso de Formação de Literógrafos, que, segundo o Carlinhos, são as pessoas que grafam letrinhas, isso, lendo-se ao pé das mesmas. Mas, verticalizando a leitura, literógrafos são os que fazem literatura, de qualquer forma, em qualquer suporte, em qualquer lugar: nos muros, na fachada dos prédios, tatuando no próprio corpo, na própria alma. São literógrafos, até mesmo, os nautas, os novos nautas da “net”, teclando e digitando, notívagos, sua poesia, sua paixão, suas dores e angústias, sua perplexidade. Se bons ou maus literógrafos, cabe aos leitores o julgamento. Sem esquecer que também há bons e maus leitores. Bem, deixemos isso pra lá, pois pretendemos também dar um Curso de Leitura em Águas Profundas. Breve, nesta praça virtual.

Segundo o meu amigo Carlinhos, aquele burocrata que atendeu o nosso Osman Lins (vide texto acima) ainda vive, ou vegeta, como queiram os meus parcos leitores. E vive porque nossos mestres jamais pensaram diferente dele. É que, mesmo nas Universidades, o Escritor não tem existencia como profissão. Pode-se ser Licenciado em Letras, Bacharelado em Línguas Neo-latinas e outros títulos equívocos e pomposos, mas, Escritor, jamais.
Pois será , meu amigo Carlos, à margem dessas FMS, Fortalezas Medievais do Saber, isto é, as universidades brasileiras, que surgirá o primeiro curso de formação de escritores, verdadeiramente: O Curso de Literografia, esse estranho e silencioso ofício, que nem remunera, nem traz prestígio social à maioria de seus adeptos. Poucos são os Amados e Coelhos dessa lida! Mas, nos conformemos, senhores, pois, mesmo na Grécia, não eram Eurípides ou Sófocles, os famosos da pólis, tampouco Sócrates ou Platão eram as estrelas-pop das cidades-estado. Os stadium gregos, como os maracas de hoje, é que abrigavam os ídolos da época. Os pelés e os “fenômenos” dos tempos clássicos eram os maratonistas, os discóbolos e outros atletas helênicos. Não há, pois, razão para desistirmos da luta mais vã drummondiana. Por isso, lutemos, mal rompa a manhã!
Salve, poeta Carlinhos do Amparo! Salve, salve poeta Getsemani de La Cruz! E tantos outros literógrafos dessa cidade das pedras que seguram o mar. Co-autores e partícipes desse I Curso de Formação de Literógrafos, sem Mestre.
Sem mestre?
Isso será assunto a ser discutido mais tarde.

O Autor
Recife, 05 de agosto de 2004.



II - Onça que lambe as próprias feridas
(ou Cobra que morde o próprio rabo)



A Sagrada Congregação Acadêmica para o Estudo das Letras deverá considerar um pecado esses nossos considerandos. Contudo, queremos cometer mais do que um simples pecadilho. Queremos ser uma abominação! Heresiarcas, queremos o anátema! Queremos a informalidade, a linguagem prosaica e coloquial, o livre pensar e teorizar, pois cada obra literária, -- alguém já disse isso --, instaura a sua própria teoria. Amaldiçoados que somos, trataremos do processo criativo, o fazer literário, coisa singular, subjetiva, que escapa às teorizações, aos cânones academicos e à metodologia científica. Procuraremos estudar isso de duas maneiras práticas, pois é de uma prática que tratamos nesse curso:
Inicialmente, por fruição e observação, lendo diretamente da obra dos próprios autores;
E, em seguida, numa abordagem indireta, esmiuçando depoimentos, cartas, entrevistas, autobiografias, sem esquecer de explorar, aqueles textos metalinguísticos, isto é, aquelas obras em que os autores se debruçam sobre seu ofício, como faz Umberto Eco em seu Pós-escrito ao Nome da Rosa, ou, de forma semelhante, o próprio Osman Lins, em Guerra sem Testemunhas, livro de ensaios em que trata do próprio ofício do escritor, ou seja, do literógrafo; livro fecundo e incisivo, que atinge os problemas mais cruciais de nosso mister, como a cobra que morde o próprio o rabo. O Carlinhos sopra-me ao ouvido e me sugere, por mais adequada à obra de Osman, por nordestina, a imagem, quase armorial, da onça que lambe as próprias feridas, que deixo aqui registrada.



III - Alguns mergulhos osmanianos


Antes de iniciarmos este III, que já nos introduz diretamente no curso, é prudente aprofundarmos uma tese deste trabalho. Mais uma vez recorro ao amigo Carlinhos do Amparo, que tem tiradas geniais para explicar coisas complexas, iluminando-as e facilitando a compreensão do troço complicado. Em síntese: quero explicar o método deste cursinho de literografia. Não é nada difícil, mas apelemos ao Carlinhos:
Certo dia, em uma saborosa discussão etílica no bar da Algaroba, Carlinhos me sai com uma de suas sacadas. Todos ali sabíamos que ele era um auto-didata, ledor voraz de tudo que é obra impressa que passasse em sua frente, quando ele então nos diz num rompante.
-- Fiz meu bacharelado em Ciências Gerais. Minha orientadora foi dona Vilma, minha professorinha primária. Graduei-me, com ela, no curso de Leitura Silenciosa. Minha universidade foi ali, no Grupo Escolar Aníbal Falcão, quando aprendi a ler, profunda e pausadamente, discernindo quem fala, de quem e do que se fala, para quem fala e como fala. Li poesia, cronica, gibi e filosofia. Li de tudo. Sei esmiuçar qualquer texto. Sou doutorado em leitura em águas profundas. Esse é o meu segredo. Tudo o que sei vem da minha habilidade com os parágrafos, com a sintaxe, com a prosódia. Portanto, sou formado em Ciências Gerais. E não me chamem de auto-didata, termo impossível e improvável. O que sou é bibliodidata. Os livros me ensinaram o pouco que sei. Eu não ensinei a mim mesmo. Sou apenas um ledor, um ledor voraz!
Ficamos pasmos, assim como você deve estar agora, leitor. Mas, hoje, diante dessa difícil tarefa de formar literógrafos, compreendo bem o que disse o Carlinhos. Nosso método, como o de sua professora primária, é o do mergulho literário em águas abissais. Nosso ferramental teórico é simples, mas pelágico: a leitura. Ao mergulhar, verdadeiramente, em um texto, você vai ter uma visão oceânica, águas claríssimas, correntes subterrâneas, peixes insólitos e imprevistos e miríades de formas de vida. Ler é mergulhar. Em vista disso, a nossa primeira lição submersa será em mares nordestinos, em algum lugar próximo à faixa litorânea dos arrecifes calcários. Pois começaremos mergulhando na obra de Osman Lins:


Exercício inicial

Leia-se o romance O Fiel e a Pedra


E, em seguida o texto Confissão, do Marinheiro de Primeira Viagem, abaixo transcrito:


Confissão

“Entregue, desde ontem, à revisão de O Fiel e a Pedra, essa tentativa de transposição, para o Nordeste de 1936, da Eneida. Não propriamente uma transposição, uma vez que muitos dos personagens e fatos apresentados têm origem na minha experiência. Mas a verdade é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.*
Daí o tom algumas vezes descritivo do livro. Mas duas outras razões, talvez mais importantes, respondem pelo que há de exterior na obra. Uma, intelectual, é a reação contra certa literatura “despojada”, contra a qual se insurge Gilberto Freyre. Outra, é de natureza passional. Ascânio angustia-se com o desaparecimento de seus mitos. Ele vê, em todas as coisas amáveis, uma garra escondida, um dente a corroê-las. Embora não possa dizer, desse personagem, que seja autobiográfico, a verdade é que, em certa época, perturbava-me esse fugir das coisas entre minhas mãos. Principalmente o fim irremediável de tudo o que constituiu o mundo da minha infância, que absolutamente não foi risonha, nem festiva, antes solitária e cinzenta, mas onde conheci a ilusão do eterno.
Ora, O Fiel e a Pedra foi uma tentativa de reconstitui-la, de refazer o meu reino devastado, tarefa que só através do romance poderia tentar. Pois eu também tivera destruída a minha Tróia, cujos muros pareciam-me inexpugnáveis. As alusões, no romance, a cheiros, a rumores, árvores e bichos, decorrem quase sempre daquela ânsia de prender a vida, que era o traço mais intenso de Ascânio; e à necessidade de fixar, ou de recuperar, uma vida que já não existe, necessidade hoje ultrapassada, porém que se tornou, na época em que concebi e elaborei este romance, irresistível. Eu queria reerguer, com amor e lucidez, o tempo da minha eternidade e, nele, tentar mover meus mitos, os heróis da minha infância, minha mitologia.”


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1 - O salto no tempo

Um texto confessional. É o que se apresenta nessa nota de viagem. Nós somos os confessores. Trata-se de uma confissão pública. Quem se confessa? Um escritor.
Vamos encontrá-lo em pleno ofício, no meio de uma viagem ao Velho Mundo. O que faz?
“ Entregue, desde ontem, à revisão de O Fiel e a Pedra.”
Disciplinado, o escritor cumpre metódicamente seu mister. Revisar seu próprio texto faz parte da rotina, às vezes tediosa do literógrafo. Com isso já se põe por terra algo dessa visão romântica do escritor famoso. Cachimbo na boca, suéter e lareira, só em filmes americanos.
O texto revisado: um romance em que tenta uma transposição da Eneida, de Virgílio, para o Nordeste de 1936. Nada como ler um depoimento direto do construtor da obra. Essa Confissão osmaniana vai nos levar aos espaços instersticiais, (como sói dizer o Getsemani de La Cruz), da obra em estudo.
Tentativa de transposição, é o que nos revela O L.: “uma vez que muitos dos personagens e fatos têm origem na minha experiência.”
O romance possui um plano e pode ser replanejado a qualquer momento:
“Mas a verdade é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.”
Uma consequência do replanejamento em Virgílio: “Daí o tom algumas vezes descritivo do livro.”
Osman empreende uma revisita. Mais: propõe um salto no tempo! E nos traz Vírgilio pro aconchego palpável do sertão nordestino.
Ave, Osman, o mago da Vitória de Santo Antão!

*Leia-se também, por oportuna, a Eneida de Virgílio.

BIBLIOGRAFIA


LINS, Osman, Marinheiro de Primeira Viagem, 2. ed. - São Paulo: Summus Editorial, 1980. p. 42, 43.
LINS, Osman, O Fiel e a Pedra, 6. ed. - São Paulo: Summus Editorial, 1979, 291 p.



Fim (da parte introdutora)
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Aguardem novos mergulhos!!! rsrsrs

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