Uma Epígrafe



"...Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e de sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender."...[Alfredo Bosi, in O Ser e o Tempo da Poesia, p. 133]

domingo, setembro 24, 2006

Carlos, o nosso


Mais uma postagem que abre espaço para outro poeta
que não o editor do blog, evitando assim a fixação no próprio
umbigo. rsrsrs
E agora com o Peninha, apelido carinhoso colocado
no Carlos Pena Filho, pelo baiano Jorge Amado. Aliás,
a narrativa "A morte e a morte de Quincas Berro d'água",
desse escritor da boa terra, foi dedicada ao nosso Carlos.


A Solidão e sua Porta


Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

Quando, pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha

A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório,
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída:
Entrar no acaso e amar o transitório.


Carlos Pena Filho



Biografia (a ser digitada)

quinta-feira, setembro 21, 2006

Orfeu nordestino




Jorge de Lima, o inventor de Orfeu

Só a poesia une os extremos
e numa mesma frase alberga
imagens tão díspares,
como nestes versos de Caetano:

"...um amor assim violento,
quando torna-se mágoa,
é o avêsso de um sentimento:
oceano sem água"


Embora o mar se esconda em léguas de vazante
antes de virem as terríveis tsunamis,
esse deserto marinho seria impossível
sem a presença órfica da poesia.

Essa presença órfica transcende todos os limites em Jorge de Lima,
que reinventa a língua e desafia os deuses, como Orfeu,
criando um universo novo e só possível pela poesia,
pela punjante e criadora força mitopoética desse alagoano,
cujo fascínio transcrevo em poucos sonetos, aqui neste blog lírico,
que fica invadido do mais puro e profundo lirismo!
Aqui estão os cantos que escolhi em Invenção de Orfeu:



V


Não esqueçais escribas os somenos
As geografias pobres, os nordestes
Vagos, os setentriões desabitados
E essas flores pétreas antilhanas.

Há nesses mapas números pequenos,
Uns tempos esbraseados para pestes
E muitos ossos tíbios chamuscados,
Faces perdidas, formas inumanas.

Não esqueçais, escribas, ir contando
Nas cartas, o que está aparente, ao lado
Das invenções em seu fictício arranjo.

E os pequenos orgulhos, sempre quando
Quereis fugir ao mundo persignado,
Ó impenitente e despenhado arcanjo.


Jorge de Lima
Canto Primeiro, Quinto soneto.



VII


Estão aqui as pobres coisas: cêstas
Esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
Arrebentadas, abas corroídas,
Com seus olhos virados para os que

As deixaram sózinhas, desprezadas,
Esquecidas com outras coisas, sejam:
Búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
Penas de ave e penas de caneta,

E as outras pobres coisas, pobres sons,
Coitos findos, engulhos, dramas tristes,
Repetidos, monótonos, exaustos,

Visitados tão só pelo abandono,
Tão só pela fadiga em que essas ditas
Coisas goradas e orfãs se desgastam.


Idem
Quinto Canto, Sétimo soneto



VIII


A estepe e a noite se deitaram juntas,
Paralelas as asas sobre as asas,
Ambas com as solidões, ambas defuntas,
E entre elas, sós, ardentes como brasas,

Espreitando à direita e à esquerda o estrito
Espaço ínfimo que entre as duas corre,
Correm cruciados como o imenso grito,
Imenso grito mudo de quem morre,

Os olhos renegados de quem está
Esperando, esperando. Que esperando?
Entre a estepe e a noite olham olhos, rente

Às trevas opressoras, olhos que a
Estepe e a noite juntas se estreitando
Apagam misericordiosamente.

Idem
Quinto Canto, Oitavo soneto.


XV


Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia
E a comida que acaso desejares,
E algum poema que ilumine os ares
Menos que a luz malsã dessa candeia.

Aqui terás o peixe desses mares
E o mais gostoso mel de toda a aldeia.
De onde vens? De que cimos? De que altares?
Que luz angelical te agita a veia?

Como te chamas vida da outra vida,
Espelho noutro espelho transmudado,
Lume na minha luz anoitecida?

Serás o dia à noite do outro lado
De meu ser que nas trevas se apagou?
Ou serás qualquer lume que não sou?


Idem
Segundo Canto, Décimo-quinto soneto


XXVI

Qualquer que seja a chuva desses campos
Devemos esperar pelos estios;
E ao chegar os serões e os fiéis enganos
Amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
E os ninhos imortais forem vazios,
Há de haver pelo menos por ali
Os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos
E ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas
Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.


Idem
Primeiro Canto, Vigésimo-sexto soneto.


Pequena Biografia
copiada do © Projeto Releituras Arnaldo Nogueira Jr


Jorge Matheos de Lima nasceu em Alagoas, em 3 de abril de 1893. Fez os primeiros estudos em sua cidade, União, e depois em Maceió, no Colégio dos Irmãos Maristas. Estudou Medicina em Salvador, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre os serviços de higiene na capital federal. Ainda estudante de Medicina, publicou seu primeiro livro, XIV Alexandrinos (1914). Após ter se formado, retornou a Maceió. Sem jamais ter abandonado a Medicina, lecionou na Escola Normal Estadual da cidade, chegando a ser diretor. Ocupou outros cargos públicos estaduais, como Diretor-Geral da Instrução Pública e Saúde e Deputado, além de manter constante seu interesse pelas artes plásticas.

Em 1930, transfere-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro, onde clinica e leciona Literatura Brasileira, nas Universidades do Brasil e do Distrito Federal. Em 1925 foi eleito vereador, ocupando, três anos mais tarde, a presidência da Câmara, no Rio de Janeiro.

Assinalou a polimórfica trajetória com muitos e sucessivos rótulos estéticos: modernista, regionalista, nativista, “cantor da poesia negra e do folclore”, neo-simbolista, místico-realista, “poeta cristão.” ·

Sua obra mais conhecida, "Essa negra Fulô", foi publicada em seu livro "Novos Poemas".

Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1953.

PRINCIPAIS OBRAS

Poesia

XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos Poemas (1929); Poemas Escolhidos (1932); Tempo e Eternidade (1935) - em colaboração com Murilo Mendes; A Túnica Inconsútil (1938); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950) - inclui produção anterior, juntamente com Anunciação e Encontro de Mira-Celi; Invenção de Orfeu (1952); Castro Alves - Vidinha (1952).

Romances

Salomão e as Mulheres (1927); O Anjo (1934); Calunga (1935); A Mulher Obscura (1939); Guerra dentro do Beco (1950).

Ensaios, história, biografias

A Comédia dos Erros (1923); Dois Ensaios (1929) [Proust e Todos Cantam sua Terra]; Anchieta (1934); Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasilien (1934); História da Terra e da Humanidade (1944); Vida de São Francisco de Assis (1944); D. Vital (1945); Vida de Santo Antonio (1947).

segunda-feira, setembro 18, 2006

Uma rosa rasa



Naqueles dias lia Foucault, As Palavras e as Coisas,
e, depois de animado debate com Lana Reis,
estagiária do Memorial da Justiça,
sobre a estética modernista com "a dura poesia
concreta de suas esquinas" em contraponto com
certo exagero neo-barroco e outras questões interessantes,
a danadinha desafiou-me a fazer um poema sobre a porta
da nossa sala de trabalho.
Fiz.
Creio que dá pra publicar aqui:

Uma Rosa rasa


À porta, o simples:
ergue-se o ser plano e angular,
mera tábula.

À porta, o singular:
planta de folha única,
monolito em eucatex, uma rosa rasa.

À porta, a estética:
fruta de sua função.
bela sem ter a necessidade de pétala.

À porta, aportam
a forma e o fundo:
silogismo binário, o geométrico e profundo
ser que abre e fecha
a prosa do mundo

Eurico
14/06/2001

Poema dedicado a Lana Helane Reis Raposo,
uma das pessoas mais brilhantes que já conheci,
e de quem recebi lições profundas e belas
que guardo com o carinho e o cuidado de um eterno aprendiz.

domingo, setembro 17, 2006

Duas Versões de "A Cristaleira"








para apreciação do Mestre Diógenes,
conhecedor da Língua e da fragilidade dos cristais...
após conversa sobre nosso estranho ofício,
essa brincadeira linguística:
aliterativa, sinestésica, metonímica,
e sei lá mais o quê.





A Cristaleira
versão 1

Na aresta
da sala
de estar
estava a cristaleira
A um tempo quieta e aflita
Equilibrando em prateleiras vítreas
finíssimos cristais...

Por trás
De olhos cristalinos
Trago o t(r)emor astigmático,
A tentação dos estilhaços
E a sensação de (ha)ver um gato

( O que traz um gato a este tema?)

Um sobressalto:
O espanto, o grito!
Um gato.

Cacos de vidro.

Súbito, um gato!
Pênsil, pingente, pendular
Feito o lustre no teto
Da sala, a aresta
estala
pela lente dos meus óculos,
Um salto ( ou a ilusão de um salto )

O sobressalto:
A cristaleira sob o gato.

O impacto,
Trinca-se-me o fotocromático, ante os meus olhos fitos, mil pedaços
Ou a ilusão dos estilhaços...


Eurico, 13.12.2000.


A Cristaleira
versão 2

Na aresta
da sala
de estar
estava a cristaleira
A um tempo, quieta e aflita,
Equilibrando, em prateleiras vítreas,
finíssimos cristais...

Por trás
Dos olhos cristalinos
Trato,
retrato,
um remoto
t(r)emor astigmático,
a tentação dos estilhaços
e a sensação de (ha)ver um gato
(O que traz um gato a este tema?)

Um sobressalto:
O espanto, o grito.
Um gato.

Biscouits de vidro.
Bijuterias.
Súbito, um gato!
De porcelana,
pênsil no teto,
lustre pingente.
Na aresta
da sala de estar,
a cristaleira
estala inteira
à lente dos meus óculos.
No impacto:
trinca-se-me o fotocromático,
ante os meus olhos fitos, mil pedaços.

Um salto ( ou a ilusão de um salto )

O sobressalto:
A cristaleira sob o gato.

Ou a ilusão nos estilhaços...

Eurico, 13.12.2000

Nota:
Às vezes, no processo criativo, dá-se a angústia da escolha.
Deixo, pois, as duas versões, para o Prof. Diógenes,
e para meus dois ou três leitores fiéis. rsrsrs

Abs fraternos.
Eurico - 17/09/06

sexta-feira, setembro 15, 2006

Demarcação da Poesia nº 2



Meu canto espumeja e baba, como os detritos na lama,
palavras-lixo que enfeiam a orla do manguezal.
Meu versejar, fugidio, repente breve e assustado,
parece um uçá de andada, sob o troar dos trovões.
Canto com meus olhos baços, nessa paisagem restrita,
zanzando entre os mocambos, pelas ruelas estreitas.
Só os pardais sobre o mangue sabem a linguagem da brisa
que soprava na caatinga de onde vim retirante...
Vou cantando e navegando nessa baiteira raquítica,
bichinho instável e manhoso,
feito a alimária cansada que deixei pelos caminhos.
Meu canto veio fugido e encalhou nessas ilhas,
minh’alma presa às raízes, molhando
a crosta de abrolhos de meu chão interior.
Dessa lama pardacenta, surgem palavras aquáticas,
salôbras e insalubres, ligeiras feito os crustáceos,
encovando-se em meu ser.
A alma da maré vazante é um ôco em minhas lembranças,
a angústia de não ser nada nessa cidade de escombros,
mocambos que não produzem palavras pra se cantar.
(Ah...que saudade de lá, de tanger gado moroso e à tardinha aboiar...)


Eurico
In: Ser Tão Profundo/Mangue Interior

quinta-feira, setembro 14, 2006

Demarcação da Poesia nº 1



Meu canto é que nem um filete d’água
minando a pulso de um lajeiro.
É assim, arrastado, gutural,
canto monossilábico, melopéia pungente,
arrancada da pedra que sangra no reino de meu peito.
Canto esse meu canto agoniado, esse relincho, esse mugir,
essa infralinguagem,como a linguagem dos bichos
que tanjo em meu sertão profundo..
Vou cantando e tangendo esse gado invisível,
por entre espinharas sibilantes e seixos esbraseados.
Meu canto germina feito um cardeiro em minha alma de abrolhos,
na solidão e no silêncio,
durante as léguas tiranas dessa caatinga interior.
Dessa terra rachada e sem húmus, exsurge um léxico raquítico,
vocábulos mínimos que se alongam, tristes aboios, mugidos,
na minha garganta rouca e ressecada.
Com a morte em minhas lembranças e a dor em minhas andanças,
canto uma agonia fechada, solitária,
universo parco de cabras e pedras,
quase sem palavras com que se cantar.


Eurico
in: Ser Tão Profundo/Mangue Interior

domingo, setembro 10, 2006

Resenha Livre Nº 1


Uma flor do pântano



O que se vê por um olho nem sempre é o que se vê pelo outro. Esse ditado popular, cheio de sabedoria, servirá de mote inicial para a leitura que faço do livro Memórias de Minhas Putas Tristes, do escritor Gabriel Garcia Marquez.
Um homem, no dia em que completa noventa anos, decide ter uma noite de prazer com uma ninfeta virgem. Para isso contrata, a peso de ouro, com a ajuda de uma cafetina, da qual era freguês antigo, uma menina que estava sendo iniciada no ofício da prostituição.
Esse é o tema principal. Esses, os poucos protagonistas.

O que se vê por um olho:

Perpetra-se um crime nefando: alicia-se uma criança para os prazeres abjetos de um velho decrépito. Tudo no tema cheira a podridão.
Vê bem, o olho políticamente correto.

Mas, o outro olho, o do artista, vê mais longe:

Eis a magia do escritor genial. Como do pântano mais fétido nasce a flor de lótus, consegue Garcia Marquez fazer brotar desse lamentável enredo, a beleza e a ternura. O amor aos noventa anos, paternal e derradeiro, vai surgir das páginas dessa novela exemplar. Surgirá, também, por outras vias, o amor virginal da menina; embora esse desgraçado amor tenha como nascedouro a extrema miséria, a vida sem afetos e sem carinho, sem brinquedos e, quem sabe, sem pai.
Por certo trata-se de uma relação quase incestuosa, se é que também havemos de chamar de incesto à relação amorosa entre avô e neta.
O que resta do romance, ao final, é a história de um ignominioso crime que foi ultrapassado pelo amor. E o livro de Garcia Marquez nos revigora, nos abre o entendimento de que o homem é capaz de purificar-se dentro da imundície, de criar jardins no deserto e de, como se fosse Deus, escrever em linhas tortas uma história do bem. Quem tem ouvidos, ouça; e, quem tem olhos de ver, veja! A arte vê a flor no pântano!
Salve a Literatura! Salve a Vida Humana! Apesar de todas as crueldades, salve!



Eurico – agosto 2006
Aos estagiários do Arquivo Geral do TJPE

sábado, setembro 09, 2006

Às crianças do Líbano (in memorian)



Não há uma voz sequer que se alevante
contra a infâmia e a covardia
Vendo o Israel de Deus a cometer
um frio genocídio à luz do dia?
Não cobrem o rosto de vergonha,
ao praticar seus crimes. Descarados,
Atiram os seus mísseis
sobre infantes desarmados.
Ah, cedros do Líbano,
até quando havemos de assistir
A morte de inocentes
Que, indefesos, ao cair
Sob o impacto das bombas
neonazistas de Sião,
Erguem os olhos a Deus,
(se há um Deus na imensidão:
Se Alah, Javé, Jesus, qualquer que seja
o Deus, de Sarah ou de Hagar)
olhos puros de cordeiros,
os corpos, postos no altar,
expostos em holocausto,
as crianças do Líbano,
vítimas desse grande Mal,
volvem os seus olhinhos
pra esse Deus Imparcial,
e imploram por Justiça,
se, em verdade, há um Juiz Final,
que aos vivos e os mortos,
em seu trono há de julgar,
quando, então, essa Justiça chegará?

Eurico, agosto 2006
(mais um clamor do que um poema)

MANUAL DE LITEROGRAFIA SEM MESTRE


















sub-título: Exercícios de mergulho
Editora do Autor
Recife
05/08/2004


Uma epígrafe

O ato de escrever é um ato de apreensão da realidade;(...) a escrita viabiliza
o conhecimento de si e do mundo(...)
escrever é uma epifania, um ato de criação

*************************************Affonso Romano de Sant’Anna



Programa Introdutório


I - Esse estranho ofício: a literografia

II - Onça que lambe as feridas, ou Cobra que morde o próprio rabo

III - Alguns mergulhos osmanianos



I - Esse estranho ofício: a literografia

O escritor pernambucano Osman Lins(1924-1978), em seu Marinheiro de Primeira Viagem, narra um curioso diálogo que travou com um funcionário do guichê em que se que autorizavam os passaportes para a Europa. Esse incidente, por ilustrativo e pitoresco, servirá de pórtico a esse despretensioso curso de literografia sem mestre:

UM BUROCRATA

- Profissão?
- Escritor.
- Não pode ser. Não é isto que consta dos documentos do Imposto de Renda.
- Naturalmente. Não se paga imposto de renda como jornalista ou escritor.
- Tenho de por “bancário”. O senhor não trabalha em Banco?
- Trabalho.
- Quer dizer que é escritor-amador.
- Existe rádio-amador, mas não escritor-amador. Ou se é escritor, ou não se é.
- Mas se o senhor trabalha em Banco, tenho de por “bancário”.
- Não é como bancário, e sim como escritor, que viajo. A maioria de meus possíveis contatos, na Europa, será de natureza artística e literária. Só vou entrar em Banco para trocar dólares. Como cliente. Não quero que o senhor ponha “bancário”. Pode prejudicar-me. Já perdi uma bolsa de estudos porque, nos documentos, constava que trabalho em Banco.
- Pois eu só posso por “escritor”, se o senhor provar que é escritor.
- Trago-lhe os livros.
- Ah, não servem.
- Como é que não servem?
- É preciso trazer um documento, assinado por duas pessoas, atestando que o senhor é escritor.
- Selado?
- Perfeitamente. Com firma reconhecida.
- Então os livros não servem?
- Claro que não, meu senhor. Livro não é documento”
(LINS, 1980: p. 42)

Tenho um grande amigo osmaniano, chamado Carlinhos do Amparo. O osmaniano, aqui, é parecido com os apelidos que se dão aos seguidores deste ou daquele filósofo ou cientista famoso. Há os freyreanos, os heideggerianos e outros fulanos. O Carlos Pequeno do Espírito Santo, morador do Amparo, Olinda, é estudioso do Osman Lins, como ele próprio diz, por necessidade visceral. Ou estudava ou se danava. Carlos, auto-didata, é o cão chupando mangas, ou seja, um inventor de tudo quanto não presta. Poeta, ficionista, tocador de violão, amante e defensor das meretrizes das ladeiras carcomidas das Olindas, como ele costuma chamar a cidade-patrimônio. Dentre outras coisas, ele é o criador do termo literógrafo, que considera como o mais adequado para designar a profissão de ficcionista ou de poeta, que é a dele desde a mais tenra idade. Tudo começou quando, aos trinta e poucos anos, ou seja, uns vinte de escrevinhador, resolveu fazer vestibular de Letras, para uma pequena Faculdade aqui da Mauricéia-mais-que-desvairada. Sua intenção: formar-se escritor. Ficou apenas na intenção. Além das farras homéricas (aliás, por que as farras são homéricas? alguém sabe?) nos bares das vizinhanças da Faculdade, pouco conseguiu aprender. A Faculdade de Filosofia do Recife ficava ali na Avenida Conde da Boa Vista, paraíso dos barzinhos, como o Mustang, histórico bar dos subversivos de todas as tendências, nos anos 70, hoje, 2004, tendendo mais para bar GLS, do que de serões etílico-politizados. Nela, na Fafire, pouco aprendeu. Além das discussões etílicas, teve algumas noções enfadonhas de sintaxe e de latim, teorias literárias abúlicas, tudo em aulas sonolentas, excetuadas as de Filosofia, com um certo prof. Aderval, também poeta e dos bons. Com um agravante: à época: (isso foi lá pelos idos de 1989-90) nada de Osman Lins, nada de Carrero, nem de Antonio Torres ou Raduan Nassar, para não ficar só nos nossos. Eu era seu colega de turma e, a bem da verdade, citaria uma gaúcha, que lecionava Brasileira, e a mineira, se não me engano, de Linguística, como boas mestras. Fora disso, aquilo lá era apenas um cursinho de formação de professores de gramática e literatura, e nada mais: palavras do Carlos. Faltava vida, faltava criação, faltou-nos o ar...demos no pé.
E é para o Carlinhos do Amparo, para os escritores e poetas dessa cidade, marginalizados nos becos da fome, nos guetos litero-alcoólicos da cidade maurícia; é para nós que começo a erigir esse Curso de Formação de Literógrafos, que, segundo o Carlinhos, são as pessoas que grafam letrinhas, isso, lendo-se ao pé das mesmas. Mas, verticalizando a leitura, literógrafos são os que fazem literatura, de qualquer forma, em qualquer suporte, em qualquer lugar: nos muros, na fachada dos prédios, tatuando no próprio corpo, na própria alma. São literógrafos, até mesmo, os nautas, os novos nautas da “net”, teclando e digitando, notívagos, sua poesia, sua paixão, suas dores e angústias, sua perplexidade. Se bons ou maus literógrafos, cabe aos leitores o julgamento. Sem esquecer que também há bons e maus leitores. Bem, deixemos isso pra lá, pois pretendemos também dar um Curso de Leitura em Águas Profundas. Breve, nesta praça virtual.

Segundo o meu amigo Carlinhos, aquele burocrata que atendeu o nosso Osman Lins (vide texto acima) ainda vive, ou vegeta, como queiram os meus parcos leitores. E vive porque nossos mestres jamais pensaram diferente dele. É que, mesmo nas Universidades, o Escritor não tem existencia como profissão. Pode-se ser Licenciado em Letras, Bacharelado em Línguas Neo-latinas e outros títulos equívocos e pomposos, mas, Escritor, jamais.
Pois será , meu amigo Carlos, à margem dessas FMS, Fortalezas Medievais do Saber, isto é, as universidades brasileiras, que surgirá o primeiro curso de formação de escritores, verdadeiramente: O Curso de Literografia, esse estranho e silencioso ofício, que nem remunera, nem traz prestígio social à maioria de seus adeptos. Poucos são os Amados e Coelhos dessa lida! Mas, nos conformemos, senhores, pois, mesmo na Grécia, não eram Eurípides ou Sófocles, os famosos da pólis, tampouco Sócrates ou Platão eram as estrelas-pop das cidades-estado. Os stadium gregos, como os maracas de hoje, é que abrigavam os ídolos da época. Os pelés e os “fenômenos” dos tempos clássicos eram os maratonistas, os discóbolos e outros atletas helênicos. Não há, pois, razão para desistirmos da luta mais vã drummondiana. Por isso, lutemos, mal rompa a manhã!
Salve, poeta Carlinhos do Amparo! Salve, salve poeta Getsemani de La Cruz! E tantos outros literógrafos dessa cidade das pedras que seguram o mar. Co-autores e partícipes desse I Curso de Formação de Literógrafos, sem Mestre.
Sem mestre?
Isso será assunto a ser discutido mais tarde.

O Autor
Recife, 05 de agosto de 2004.



II - Onça que lambe as próprias feridas
(ou Cobra que morde o próprio rabo)



A Sagrada Congregação Acadêmica para o Estudo das Letras deverá considerar um pecado esses nossos considerandos. Contudo, queremos cometer mais do que um simples pecadilho. Queremos ser uma abominação! Heresiarcas, queremos o anátema! Queremos a informalidade, a linguagem prosaica e coloquial, o livre pensar e teorizar, pois cada obra literária, -- alguém já disse isso --, instaura a sua própria teoria. Amaldiçoados que somos, trataremos do processo criativo, o fazer literário, coisa singular, subjetiva, que escapa às teorizações, aos cânones academicos e à metodologia científica. Procuraremos estudar isso de duas maneiras práticas, pois é de uma prática que tratamos nesse curso:
Inicialmente, por fruição e observação, lendo diretamente da obra dos próprios autores;
E, em seguida, numa abordagem indireta, esmiuçando depoimentos, cartas, entrevistas, autobiografias, sem esquecer de explorar, aqueles textos metalinguísticos, isto é, aquelas obras em que os autores se debruçam sobre seu ofício, como faz Umberto Eco em seu Pós-escrito ao Nome da Rosa, ou, de forma semelhante, o próprio Osman Lins, em Guerra sem Testemunhas, livro de ensaios em que trata do próprio ofício do escritor, ou seja, do literógrafo; livro fecundo e incisivo, que atinge os problemas mais cruciais de nosso mister, como a cobra que morde o próprio o rabo. O Carlinhos sopra-me ao ouvido e me sugere, por mais adequada à obra de Osman, por nordestina, a imagem, quase armorial, da onça que lambe as próprias feridas, que deixo aqui registrada.



III - Alguns mergulhos osmanianos


Antes de iniciarmos este III, que já nos introduz diretamente no curso, é prudente aprofundarmos uma tese deste trabalho. Mais uma vez recorro ao amigo Carlinhos do Amparo, que tem tiradas geniais para explicar coisas complexas, iluminando-as e facilitando a compreensão do troço complicado. Em síntese: quero explicar o método deste cursinho de literografia. Não é nada difícil, mas apelemos ao Carlinhos:
Certo dia, em uma saborosa discussão etílica no bar da Algaroba, Carlinhos me sai com uma de suas sacadas. Todos ali sabíamos que ele era um auto-didata, ledor voraz de tudo que é obra impressa que passasse em sua frente, quando ele então nos diz num rompante.
-- Fiz meu bacharelado em Ciências Gerais. Minha orientadora foi dona Vilma, minha professorinha primária. Graduei-me, com ela, no curso de Leitura Silenciosa. Minha universidade foi ali, no Grupo Escolar Aníbal Falcão, quando aprendi a ler, profunda e pausadamente, discernindo quem fala, de quem e do que se fala, para quem fala e como fala. Li poesia, cronica, gibi e filosofia. Li de tudo. Sei esmiuçar qualquer texto. Sou doutorado em leitura em águas profundas. Esse é o meu segredo. Tudo o que sei vem da minha habilidade com os parágrafos, com a sintaxe, com a prosódia. Portanto, sou formado em Ciências Gerais. E não me chamem de auto-didata, termo impossível e improvável. O que sou é bibliodidata. Os livros me ensinaram o pouco que sei. Eu não ensinei a mim mesmo. Sou apenas um ledor, um ledor voraz!
Ficamos pasmos, assim como você deve estar agora, leitor. Mas, hoje, diante dessa difícil tarefa de formar literógrafos, compreendo bem o que disse o Carlinhos. Nosso método, como o de sua professora primária, é o do mergulho literário em águas abissais. Nosso ferramental teórico é simples, mas pelágico: a leitura. Ao mergulhar, verdadeiramente, em um texto, você vai ter uma visão oceânica, águas claríssimas, correntes subterrâneas, peixes insólitos e imprevistos e miríades de formas de vida. Ler é mergulhar. Em vista disso, a nossa primeira lição submersa será em mares nordestinos, em algum lugar próximo à faixa litorânea dos arrecifes calcários. Pois começaremos mergulhando na obra de Osman Lins:


Exercício inicial

Leia-se o romance O Fiel e a Pedra


E, em seguida o texto Confissão, do Marinheiro de Primeira Viagem, abaixo transcrito:


Confissão

“Entregue, desde ontem, à revisão de O Fiel e a Pedra, essa tentativa de transposição, para o Nordeste de 1936, da Eneida. Não propriamente uma transposição, uma vez que muitos dos personagens e fatos apresentados têm origem na minha experiência. Mas a verdade é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.*
Daí o tom algumas vezes descritivo do livro. Mas duas outras razões, talvez mais importantes, respondem pelo que há de exterior na obra. Uma, intelectual, é a reação contra certa literatura “despojada”, contra a qual se insurge Gilberto Freyre. Outra, é de natureza passional. Ascânio angustia-se com o desaparecimento de seus mitos. Ele vê, em todas as coisas amáveis, uma garra escondida, um dente a corroê-las. Embora não possa dizer, desse personagem, que seja autobiográfico, a verdade é que, em certa época, perturbava-me esse fugir das coisas entre minhas mãos. Principalmente o fim irremediável de tudo o que constituiu o mundo da minha infância, que absolutamente não foi risonha, nem festiva, antes solitária e cinzenta, mas onde conheci a ilusão do eterno.
Ora, O Fiel e a Pedra foi uma tentativa de reconstitui-la, de refazer o meu reino devastado, tarefa que só através do romance poderia tentar. Pois eu também tivera destruída a minha Tróia, cujos muros pareciam-me inexpugnáveis. As alusões, no romance, a cheiros, a rumores, árvores e bichos, decorrem quase sempre daquela ânsia de prender a vida, que era o traço mais intenso de Ascânio; e à necessidade de fixar, ou de recuperar, uma vida que já não existe, necessidade hoje ultrapassada, porém que se tornou, na época em que concebi e elaborei este romance, irresistível. Eu queria reerguer, com amor e lucidez, o tempo da minha eternidade e, nele, tentar mover meus mitos, os heróis da minha infância, minha mitologia.”


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1 - O salto no tempo

Um texto confessional. É o que se apresenta nessa nota de viagem. Nós somos os confessores. Trata-se de uma confissão pública. Quem se confessa? Um escritor.
Vamos encontrá-lo em pleno ofício, no meio de uma viagem ao Velho Mundo. O que faz?
“ Entregue, desde ontem, à revisão de O Fiel e a Pedra.”
Disciplinado, o escritor cumpre metódicamente seu mister. Revisar seu próprio texto faz parte da rotina, às vezes tediosa do literógrafo. Com isso já se põe por terra algo dessa visão romântica do escritor famoso. Cachimbo na boca, suéter e lareira, só em filmes americanos.
O texto revisado: um romance em que tenta uma transposição da Eneida, de Virgílio, para o Nordeste de 1936. Nada como ler um depoimento direto do construtor da obra. Essa Confissão osmaniana vai nos levar aos espaços instersticiais, (como sói dizer o Getsemani de La Cruz), da obra em estudo.
Tentativa de transposição, é o que nos revela O L.: “uma vez que muitos dos personagens e fatos têm origem na minha experiência.”
O romance possui um plano e pode ser replanejado a qualquer momento:
“Mas a verdade é que o romance, já iniciado, foi replanejado tendo em vista o poema de Virgílio.”
Uma consequência do replanejamento em Virgílio: “Daí o tom algumas vezes descritivo do livro.”
Osman empreende uma revisita. Mais: propõe um salto no tempo! E nos traz Vírgilio pro aconchego palpável do sertão nordestino.
Ave, Osman, o mago da Vitória de Santo Antão!

*Leia-se também, por oportuna, a Eneida de Virgílio.

BIBLIOGRAFIA


LINS, Osman, Marinheiro de Primeira Viagem, 2. ed. - São Paulo: Summus Editorial, 1980. p. 42, 43.
LINS, Osman, O Fiel e a Pedra, 6. ed. - São Paulo: Summus Editorial, 1979, 291 p.



Fim (da parte introdutora)
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Aguardem novos mergulhos!!! rsrsrs

sexta-feira, setembro 08, 2006

Galochas

A palavra navega dilúvios, nunca dantes.
Sai do pélago anterior e atravessa a urbe.
Vagidos antes do ontem, por mais ontens havidos...
Sussurros edênicos.
Urros em Ur.
Salmos em Salém.
Sylva e Pólis & Cia;
Abissal_catadupa.com

Chovia muito e eu em galochas.
(um singular no coletivo: risos)
Risível, o tempo...
Tríbio, flui.
Panta rei!
Vórtices, volutas, pipas e piões...fugazes.
Fui...


Eurico 22.06.06
esboço de poema

Ceia


ao poetartista-plástico Eugênio Paxelly

Assentados à mesa
repartem o peixe mitológico
(mil anos os espreitam das escamas carcomidas)
Mil olhos
Mil’entes
Ante a mesa posta, verbofágicos,
os comedores de palavras
― ceiam ázimos
― bebem verbo
― gestam lácteas estrelas.
Vejam-me d’entre eles,
meus múltiplos eus e eu,
afiando essa faca ineffabille,
repartindo, nesse médium volátil,
Esse pães guturais...


Pina
06/11 /1995
Eurico

terça-feira, setembro 05, 2006

EU-LÍRICO, o Nº 1 formato blog

capa do zine colagem




Foi em meados de 1994 que comecei a produzir um zine-collage para divulgar meus textos poéticos.
Era um fanzine literário artesanal, que eu divulgava em uma rede alternativa de poetas que trocavam cartas, numa mão de obra que tomava todo o tempo do mundo. Mas era gratificante aquilo! Depois todos foram migrando pra Internet. Eu então parei a produção no 13º volume. Agora, com este blog, começo por retomar os textos do antigo zine bissexto, entremeados pelos comentários do meu compadre Carlinhos do Amparo, e pelos meus textos ficcionais, ensaios e crônicas.
Tenho dito...estou a dizer.




NOTA:
Bem, pessoal, tudo aqui é experiencia nova pra mim. Vou editando como posso e, ao produzir, vou aprendendo. Abaixo transcrevo o Eu-lírico nº 1, de maio de 1994. Nele eu publiquei o poema Peleja, que teve a felicidade de ser agraciado com um honroso 3º lugar em concurso literário na Bienal do Livro de Pernambuco daquele ano.
A cada exemplar o meu compadre Carlinhos do Amparo, poeta olindense, faz um interessante comentário, que vale por si só, pela espirituosidade e a verve de seu autor. Confiram agora:


“EU-LI-RICO”
Ano 1 – Nº. 1 – maio/94





PELEJA (o poema)

A Carlos Pena Filho



Acender uma fogueira
Sobre os destroços da fúria:
Dizer o dom mais terrível
No tom da mais vil ternura.
Por monossílabos vastos
Cantar o avêsso, a feiúra.

Atravessar a existência,
Esse fado, essa caatinga,
Com a Língua ressecada
E o estio dentro da fala.

Domar a Onça suasssuna
Da Vida graciliana,
Inda que o peito lanhado
Pela palavra, cardeiro;
Pela palavra, essa morte.

Aboiar angustiado,
Rumor de vozes queimando:
Viver é ser renitente,
Acender uma fogueira
Sobre os destroços, os destroços,
(...ai, que légua tão tirana...)
sobre os destroços da fúria.


3º Lugar no Salão Pernambucano de Poesia – Bienal do Livro 1994

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PELEJANDO (o comentário)

por Carlinho do Amparo*


Peleja surgiu de um a idéia aparentemente muito simples:
Fazer um poema vazado em um linguajar regional que anunciasse algo de universal.
Além disso havia um mote.
Um mote perfeito: dois versos de Carlos Pena Filho. Os dois versos que abrem e fecham o poema.
E um cantador com um mote, ninguém segura.
Mas, acautelem-se os leitores que verão Peleja como um texto regionalista.
Há mais:
há um metapoema;
ecos de Existencialismo;
uma brincadeira linguística;
um aboio...
há, enfim, um poema que pensa o humano a partir da realidade mais presente ao poeta.
Aí ele encontra as palavras com que fala o real.
Lembro da história do jovem artista que procurou Tolstoi e lhe indagou: Mestre, o que faço para ser universal?
E o Mestre respondeu: Pinta a tua aldeia!
Peleja diz o universal “com o estio dentro da fala e co’a a Língua ressecada”.
O poeta acende uma fogueira sobre os destroços da fúria!

*Carlinhos do Amparo é poeta, boêmio e intelectual.
Advogado dos lúmpens e das meretrizes da cidadela de Olinda,
patrimonio cultural da humanidade.

segunda-feira, setembro 04, 2006

QUEM SOU EU?


Luiz Eurico de Melo Neto, nome que me deram à pia batismal.
Logo percebi que os nomes davam sentido às coisas, como quem sopra as brasas adormecidas de uma extinta fogueira.
E ao soprar sobre a brasa das coisas descobri a poesia, espécie de hálito que incendeia a vida.
Escondi-me no meu quarto de filho único, edipiano e tímido, e cometi poemas solitários. Ato quase libidinoso, como ejaculações precoces e adolescentes.
Desses tempos restam cinzas. Queimei-as todas, as palavras, larvas, lavas...
Mas, sobrevivente dos incêndios juvenis, continuo a brincar com fogo e a crepitar sob carvões, como se jovem fosse.
E nesse zine-blogue bissexto, o Eu-lírico, deixarei as novas lavas descerem pelas encostas do velho vulcão.
É só aguardarem....


Mais notícia biográfica

Poeta bissexto. Mais bissexto que poeta. Nascido menino-macho pelas mãos de Mãe Alice, parteira, que pegou todos os da minha casa, inclusive meus pais, sendo minha avó paterna, Dona Joaninha, a parteira de confiança dela, que só paria, ela, a parteira, pelas mãos maiêuticas de minha vó. (Mãe Alice hoje nome de rua, no bairro humilde do Pacheco, merecidamente).
No Pacheco, divisa entre Recife e Jaboatão vim ao mundo em 22 de agosto de 1955. Batizado Luiz Eurico de Melo Neto, pelo Padre Pessoa, na Igreja de N. Sra. Do Rosário, em Tejipió. Depois, coisas de adolescente, batizei-me Batista, e li Kardec, Pietro Ubaldi, e por ai vão as sandices...

Vocação:
desde tenra idade, escritor, por teimosia e não por gênio.

Profissão:
serventuário da justiça por necessidade, arquivista do Fórum da Capital (às ordens dos amigos deste blogue).

Ginásio Pernambucano, 1968 a 1973: fugia das aulas e me refugiava na biblioteca que havia no térreo. Motivo: assaltavam-me as musas, atordoavam-me, desconcentravam-me. Altas horas, puxavam-me da cama, febril, esfereográfica em punho.
Ensandeci de vez ao topar com a Ode Triunfal, Pessoa; O Elefante, Drummond; O Enterro*, Bandeira; pronto: desatinei e me danei por esse terreno movediço, a literatura.
Escola Ténica Federal: Telecomunicações, ganhei a vida por 15 anos com isso...abusei-me e decidi ser burocrata, Universidade Rural e depois Tribunal de Justiça.
Faculdade de Letras, 5 períodos. Decepção: não existe a profissão que eu perseguia. Não preciso da gramática, nem da licenciatura, pra escrever. Desisti! Trago tudo nalma. Encravada em mim, a sina, o fado, a profissão que não existe. Sou escritor. E daí?
O mais de mim: meus filhos, uma obra inédita, parte na gaveta, outra nos arquivos do Brocoió, meu PC, lento, mas companheiro véi de guerra.
Apelido: Lula.
No 14º RI, nome de guerra ou de paz: Eurico
Alter ego: Carlinhos do Amparo, poeta olindense, segredo que só revelava a poucos amigos, e agora torno público.


Eurico

* Em tempo: o poema que chamei de O Enterro, de Manuel Bandeira, na verdade é Momento num Café, que agora transcrevo:

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Bandeira, in Estrela da Manhã, 1936